Antão e quê...?

Ouvir e Escutar

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Gabriel e Ricardo Antão

Ouvir e Escutar

 

Nesta crónica em tempo de férias, quando aproveitamos para fazer uma pausa na rotina enquanto pomos em dia a audição de obras e discos, queremos abordar um tema que nos tem acompanhado desde que começámos nestas andanças musicais: a diferença entre ouvir e escutar. E se à primeira vista a diferença pode parecer meramente gramatical, na verdade há uma fundamental diferença semântica. É que em princípio estamos constantemente a ouvir, isto é, a receber informação ou estímulos auditivos, a menos que tapemos os ouvidos; mas nem sempre estamos a escutar, ou a “ouvir com atenção e propósito”, o que faz uma enorme diferença.

 

Se é verdade que esta dualidade sempre existiu, nem sempre teve tantas implicações musicais como atualmente, quando a música está presente de forma quase constante no quotidiano. Deixando conscientemente a questão da definição de música para outra altura, começamos apenas por indicar a radical revolução que teve origem com a possibilidade de gravar e reproduzir música. Esta revolução proporcionou novas técnicas e estéticas (veja-se o exemplo de Chet Baker, que podia cantar de forma intimista porque o microfone permitia a captação e projeção da voz; sem esse recurso, seria inaudível numa sala ampla), mas também alterou a abordagem pessoal e social à música, que deixou de ser obrigatoriamente feita e experienciada ao vivo (e num local específico) para poder ser uma experiência completamente individualizada, retirada do seu espaço e também do seu momento de execução.

 

Esta mudança foi permitindo, de forma gradual e inabalável, que a música permeasse o nosso quotidiano, ao ponto de a sua ausência ser a exceção. Filmes, centros comerciais, lojas, televisão, computadores, telemóveis, rádio (de entre vários exemplos possíveis), a música está quase sempre presente, seja por nossa opção ou não. Esta ubiquidade pode, eventualmente, causar alguma saturação, pelo que algumas pausas são bem-vindas. Até para não perdermos o interesse ou alguma capacidade de escuta.

 

É certo que, dependendo do contexto, a música pode ter funções diferenciadas [1]; e também acreditamos que as gravações abrem um universo de interessantes possibilidades. Mas a diferença entre ouvir e escutar prende-se, sempre, com a intenção que é colocada no ato de escutar. Vamos então a um exemplo prático: no nosso computador, facilmente conseguimos aceder a qualquer género de música, seja no YouTube, Spotify, Bandcamp ou na nossa biblioteca pessoal. Podemos ouvir música enquanto navegamos nas redes sociais ou trabalhamos, ou podemos escutar música com toda a nossa atenção, procurando desfrutar e descobrir detalhes que, de outra forma, nos passariam ao lado. Ou, por exemplo, escutando diversas versões da mesma obra: estando atentos às diferenças e refletindo sobre elas, criando uma opinião fundamentada através da indagação e reflexão quanto às diferentes opções, permite-nos crescer e amadurecer enquanto músicos. Porque, no nosso entender, os gostos discutem-se, sim, sempre com respeito e tentando entender a posição e o ponto de vista do outro. O que nos enriquece musicalmente, e nos dá mais ferramentas para a nossa própria prática musical.

 

Porque na prática musical escutar é muito importante, talvez mais até do que tocar: escutar-nos a nós e aos outros, conseguir ouvir o resultado e, tendo um objetivo em mente, trabalhar para o atingir. Mas isto não é possível, no nosso entender, sem uma escuta ativa, sem procurar realmente ouvir o que o outro tem para dizer (tocar) e dar esse espaço, sem o objetivo único de responder e ter razão (ter a primazia no resultado sonoro). Esta vontade de ouvir e dialogar humildemente com o outro é tão essencial em duo como numa grande formação orquestral.

 

Mas vamos a exemplos mais concretos, para exemplificar a nossa posição.

Um exercício que por vezes fazemos é o de tentar perceber ao certo a razão pela qual preferimos uma versão a outra. Num exemplo prático: o Vocalise, op. 34 nº14 de S. Rachmaninov, é uma obra que tem inúmeras versões e adaptações. Escolhendo duas que estão facilmente disponíveis, dos violinistas Itzhak Perlman [2] e Joshua Bell [3], deparamo-nos com duas versões de altíssima qualidade, de dois músicos de craveira mundial. Ainda assim, as versões não são, obviamente, idênticas (e ainda bem). No meu caso (Ricardo), tenho uma predileção pela versão de Joshua Bell, pois me parece mais introspetiva e contemplativa, o que espelha a minha ideia da obra; e isto deve-se tanto ao uso do vibrato (tão similar mas com diferenças tão subtis), ao timbre empregue pelos músicos e às opções interpretativas no uso de rubatos, por exemplo. Isto não retira o mérito à outra versão mencionada, que é igualmente sublime; trata-se apenas de uma preferência pessoal, que procurei entender para crescer enquanto músico, e assim ter mais ferramentas para usar na minha própria prática.

 

Outro exercício que nos parece interessante e benéfico é o de comparar versões radicalmente diferentes de uma mesma obra. Considerando, por exemplo, o tema “Nature Boy”, imortalizado por Nat King Cole, também encontramos diversas versões. Há duas que consideramos magistralmente conseguidas, e que são diametralmente opostas: a versão de Ella Fitgerald (acompanhada à guitarra por Joe Pass) [4]; e a versão de Kurt Elling (com o seu quinteto e com a Sydney Symphony Orchestra) [5]. Também aqui estamos perante versões de dois músicos absolutamente incríveis. Mas as versões são bastante díspares, começando logo pelas formações apresentadas: a primeira é de uma simplicidade desarmante, apenas com a guitarra como acompanhamento e com um ambiente intimista; a segunda tem uma vivacidade contagiante, explorando todas as capacidades vocais e musicais do cantor, assim como diversos coloridos e sonoridades, também por ter à disposição um quinteto e uma orquestra sinfónica. As diferentes versões de um mesmo tema ou obra (sempre com uma qualidade inquestionável, algo que é essencial para este tipo de exercício), mostrando-nos diferentes pontos de vista, é um exercício de humildade e de descoberta, pois mantém-nos curiosos e nos relembra que não há uma só maneira de entender a música, e que quanto mais procuramos aprender com o outro, mais iremos crescer.

 

Por último, terminamos com uma ideia, em jeito de desafio: como apresentariam (e explicariam) uma obra de música erudita a alguém que não estudou música, que se diz não apreciador? Além de nos obrigar a refletir sobre o que nos fascina nesta arte, irá ajudar-nos a clarificar as ideias, e terá o benefício adicional de, talvez, conseguir cativar novo público. O conhecido maestro Benjamin Zander consegue, num curto vídeo [6], demonstrar que todas as pessoas podem gostar de música clássica. E como é que o faz? Explicando, de forma simples, clara e bem-humorada, enquanto demonstra com exemplos práticos (mas vejam o vídeo, e maravilhem-se). Esta será, na nossa opinião, a melhor forma. Pessoalmente (Ricardo), já fiz essa experiência, escolhendo uma gravação do “D. Quixote” de Richard Strauss [7], enquanto fui dando algumas informações sobre o que se estava a ouvir (que tema representava cada personagem, que parte da história representava cada secção, entre outros). Nada de muito exaustivo, apenas algumas informações que ajudem quem está a descobrir a música erudita a ter alguma orientação. O resultado foi positivo: a pessoa não se sentiu “perdida” a ouvir (o que é um dos entraves muitas vezes referido por quem “não gosta de música clássica”), ficou deslumbrada com a perícia necessária para compor uma obra tão complexa e coerente e, igualmente importante, disse que mais facilmente iria ouvir música erudita por iniciativa própria. Uma pequena vitória, que facilmente conseguirão replicar.

 

Referência:

Byrne, D. (2012). How Music Works. Edinburgh: Canongate Books.

 


[1] Aconselhamos o livro de David Byrne, “How Music Works” (2012).

[7] Com Antonio Meneses, Wolfram Christ, Orquestra Filarmónica de Berlim e direção de Herbert von Karajan – para os interessados nestes detalhes.

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