Antão e quê...?

Interpretação Musical

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Gabriel e Ricardo Antão

Interpretação musical

 

Na crónica anterior falámos sobre o saber ouvir/escutar. Pessoalmente (Gabriel), se faço uma autoavaliação neste campo, reparo que nem sempre soube ouvir como deveria, especialmente ao fazer música de câmara. A experiência ensinou-me que é importante ter uma preparação tão profunda que nos permita estar a ouvir constantemente o que está a acontecer à nossa volta, em especial enquanto tocamos. Por outras palavras, ao estarmos demasiado preocupados com a nossa parte, deixamos de poder ouvir o resto do grupo. Para aqueles que gostam de metáforas futebolísticas, de que serve um jogador que só olha para os seus pés? Assim, é analisando a complexidade das relações musicais a acontecer que nos podemos adaptar e criar sentido musical entre as partes, mas principalmente aprender com o escutado. Mais do que isso, aproveitamos as ideias lançadas na crónica passada para lançar um olhar sobre a interpretação musical enquanto construto social. E é sobre este delicado tema que recai parte importante da nossa crónica, onde tentaremos balizar esse conceito tantas vezes ouvido, mas raramente definido em termos concretos.

 

Em especial na música Clássica/erudita, somos ensinados a ser precisos/exatos [1] e a seguir padrões convencionados: estes estabelecem níveis de qualidade pelos quais nos podemos guiar. Porém, cabe ao músico em evolução saber que este caminho, por si só, não basta. Não podemos negligenciar de forma alguma a parte prática do estudo/aprendizagem, mas tampouco a aprendizagem informal deve ter menos valor do que a primeira. Se já há séculos os aprendizes de composição eram obrigados a copiar os mestres do seu tempo, e mesmo hoje em dia os aprendizes de jazz transcrevem as improvisações dos grandes intérpretes, porque evitamos a cópia enquanto forma de aprendizagem? Ainda que a cópia como aprendizagem formal não tenha, por vezes, a melhor conotação na música Clássica, acreditamos que para intuitos de aprendizagem possa fazer o maior sentido.

 

Uma criança aprende ao imitar e copiar os seus modelos para dominar as capacidades humanas mais importantes, mas posteriormente as suas experiências pessoais também moldarão a sua personalidade. De forma análoga em música, e em determinado ponto, é o cruzar das capacidades adquiridas pela aprendizagem formal [2] com a informal [3] que nos permite criar uma personalidade musical. É importante encontrar um equilíbrio, ser profícuo suficiente na técnica aprendida, mas ter vivências suficientes para criar algo novo. “Se um jovem estiver o dia todo na sala de estudo, o que poderá ter para expressar com a sua música?” Esta frase, do lendário pianista e pedagogo Arthur Rubinstein (Sachs, 1995), é um bom exemplo daquilo que falamos.

 

A ideia que pretendemos sugerir, interpretação musical como construto social, é algo mais profundo do que o mencionado até aqui. O que sugerimos é uma forma complementar à forma empírica da produção de ciência e conhecimento, e que assenta sobretudo na reflexão sobre os campos social e humano, algo apresentado por Shotter (citado por Guanaes & Japur, 2003) para o campo da psicanálise, onde afirma que o construcionismo social reflete sobre a comunicação humana, com especial foco nos processos linguísticos e relacionais que promovem a produção de conhecimento sobre a própria pessoa e o seu mundo. Por outras palavras, é a criação de um sentido e valores comuns através de uma prática e convivência também eles comuns. Importa referir que esta abordagem não deve ser tomada como visão fatalista do construcionismo social: nem só a sociedade nos molda de forma determinada, nem as nossas experiências estão isentas de um contexto social na qual acontecem. Também por isso, quando consideramos algo musical, é sempre de uma perspetiva subjetiva, a qual tende a ser influenciada pela comunidade em que nos inserimos e à qual nos sentimos pertencentes. Sucintamente, falamos de interpretação musical como forma de expressão com base em aprendizagens formais e informais, mas sendo as últimas as que provavelmente mais nos moldam. E ao abordarmos a interpretação como forma de criação no campo musical, falamos de uma forma incessante de investigação (e descoberta!) pessoal por expandir as nossas capacidades musicais. Não queremos com isto incentivar unicamente uma rutura com o paradigma musical; estamos apenas a indicar que, ao estar cientes de toda a informação disponível e da nossa subjetividade imanente, podemos fazer escolhas que reflitam a nossa aprendizagem (formal e informal) e que resultem em novas versões válidas de uma dada obra.

 

Vamos tentar clarificar esta ideia com um exemplo. Se atentarmos ao ato de tocar numa orquestra (comunidade de prática [4]), um novo elemento sentirá necessidade – num primeiro momento – de se adaptar às convenções informais da prática orquestral e, após um período de aprendizagem/adaptação, poderá fácil- e inconscientemente mudar a sua forma de tocar, ou a sua forma de ser musical. Isto porque as adaptações àquilo que ouvimos e ao que é feito à nossa volta é, por vezes, impercetível.

 

Neste campo podemos fazer uma interessante analogia à investigação da professora Cláudia Fernandes (2016), a qual estudou as mudanças percebidas no idioma falado dos portugueses a residir na Áustria. Resumindo, esta investigadora concluiu que os portugueses a residir há vários anos na Áustria tinham inconscientemente mudado a sua forma de falar, o que levou tanto a mudanças na construção frásica, como à substituição (no português) por palavras austríacas que melhor e mais frequentemente descreviam certa ação ou objeto. Ainda que estes resultados tenham sido obtidos num campo adjacente à música, podemos encontrar similaridades nas experiências de músicos no estrangeiro. Tanto os idiomas como as formas de tocar, em vários países, se misturam de forma inconsciente, dada a longa duração do processo. Acreditamos também que estas diferenças possam ser mais notórias em instrumentos de sopro, dado o uso da fonética na produção sonora.

 

Em suma, tomamos estas adaptações musicais como parte de uma integração numa comunidade de prática cuja produção musical é aceite por todos. Ainda que não seja uma ideia completamente linear e sujeita naturalmente a exceções, acreditamos que a ideia de interpretação enquanto construto social é deveras importante, pela evidente necessidade de nos apoiarmos em ideias previamente estabelecidas e, moldados por experiências pessoais e musicais, podermos passar à produção de material musical que se encaixe no contexto onde é produzido. Se recordarmos a sabedoria popular, que “o que fala semeia; o que escuta recolhe”, confirmamos a crença generalizada de que a audição é o passo mais importante para a produção sonora.

 

Cremos que, depois destas linhas, podemos concordar que a aprendizagem informal da música tem um peso incalculável na nossa capacidade de fazer música. Por outras palavras, o tocar faz de nós instrumentistas, mas o ouvir faz de nós músicos.

 

P.S.: Interessa-nos, com estas crónicas, lançar uma saudável troca de ideias, por isso agradecemos todas as críticas e comentários.

 

 

Referências:

C. Guanaes & M. Japur (2003). Construcionismo Social e Metapsicologia: Um Diálogo sobre o Conceito de Self. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, Mai-Ago 2003, Vol. 19 n. 2, pp. 135-143

Fernandes, C. (2016). O comportamento linguístico dos emigrantes portugueses na Áustria. Editora: Peter Lang.

Lave, J. & Wenger, E. (1991). Situated Learning: Legitimate Peripherial Participation. New York: Cambridge University Press

Sachs, H. (1995). Rubinstein: A Life. New York: Groove Press.

 

[1] Leonard Bernstein, num dos seus famosos concertos comentados, sugere o termo “música exata” para descrever a música erudita, algo que acreditamos ser deveras adequado.

[2] Exemplos de aprendizagem formal: estudo/audição de música, cópia/imitação de boas práticas.

[3] Exemplos de aprendizagem informal: experiências pessoais, leituras, outras experiências auditivas, entre outras.

[4] Termo primeiramente usado por Lave & Wenger (1991), caso haja interesse no tópico.

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