Antão e quê...?

A galinha dos ovos de ouro

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Gabriel e Ricardo Antão

A galinha dos ovos de ouro

 

Nesta crónica queremos trazer à conversa um tópico frequentemente descurado, mas que tem uma importância vital na nossa área: a saúde e possíveis lesões. Toda a gente, de uma forma ou outra, já se deparou em alguma altura da sua vida com alguma lesão, mesmo que não relacionada com a prática musical. Qualquer um de nós sabe que uma lesão nos atrapalha a vida no momento e que pode influenciar o nosso futuro. É apenas de uma perspetiva pessoal que gostaríamos de expor este tema e trazer a debate temas adjacentes, eventuais catalisadores do primeiro.

 

Os cuidados com a nossa saúde podem ser facilmente descurados. É habitual apenas nos darmos conta que não estamos no caminho certo quando a situação fica incomportavelmente grave. Se no desporto as lesões são diagnosticadas com facilidade e o tema é coloquial, na música não existe o hábito de fazer um raio-x ao nosso corpo ou uma análise ao nosso tecido muscular para detetar lesões; tampouco fazemos uma análise regular à nossa capacidade pulmonar ou analisamos os nossos níveis de stress ou ansiedade. E falar abertamente deste tema é algo raro, difícil de fazer. No desporto, é feito um investimento tremendo nos cuidados médicos e preventivos, tanto na componente física como psicológica. São cada vez mais frequentes os casos de atletas que passam por um regime de treino específico para melhorar a componente física e muscular, e cada vez mais atletas admitem abertamente procurar acompanhamento psicológico, para poderem ter o melhor rendimento possível. Então, porque será que em Música esta abordagem não está normalizada?

 

Durante uma viagem de trabalho pude (Gabriel) escutar um podcast muito interessante do The Guardian - o Audio Long Read - acerca das lesões nos cantores, nomeadamente nas cordas vocais. Ainda que o tema recaísse sobretudo sobre cantores pop, a verdade é que a investigação deste jornal abordou também a música Clássica e analisou o conceito atual de qualidade vocal. Os jornalistas que investigaram esta temática puderam concluir que atualmente se pede o maior volume sonoro possível, ainda que a custo de uma menor longevidade artística, ou seja, um forçar do trato e cordas vocais a vibrarem muito acima do seu limite saudável, o que leva a que os cantores fiquem propensos a lesões, as quais os levam à sala de operações; algo arriscado e que, se a abordagem não muda, voltará a acontecer. Ao ouvir esta peça de jornalismo, ficou-me marcada a objetificação do músico, numa posição quase descartável a partir do momento em que não consegue corresponder às expectativas brutais dos seus agentes.

 

Se atendermos ao facto de que todos os instrumentistas tendem a pensar nos seus instrumentos como um amplificador das suas capacidades musicais, tentando muitas vezes imitar os cantores como objetivo máximo [1], devemos ter em atenção que abordagem pretendemos com tais comparações. Nos instrumentos de metal, é muito frequente o desejo por um maior som/volume. Porém, começamos a ouvir outras opiniões, que remetem para o timbre e foco do som, não se importando tanto com o volume, mas sobretudo com a projeção e vibração que este possa ter no auditório.

 

Nesta temática, lembro-me (Gabriel) com frequência de um episódio durante um ensaio da oitava sinfonia de Gustav Mahler, em que uma das sopranos em palco, conhecida pelo seu impressionante volume sonoro, não era capaz de executar uma dinâmica abaixo do forte mesmo em momentos delicados, tendo sido necessária a ajuda de outra soprano para tais partes. Especialmente na música Clássica/erudita, onde existe uma possibilidade de explorar inúmeros conceitos ao extremo (dinâmicas, volume, articulação, timbre, etc.), é muito limitador se nos focarmos constantemente em volume sonoro: de facto, apesar de o volume sonoro poder ser impressionante, tal poderá dificultar a capacidade de criação musical. Por comparação, um pintor que use unicamente um pincel grande, terá provavelmente maior dificuldade em trabalhar pequenos detalhes na sua obra.

 

Não menos interessante é a opinião de Hans Swarowsky [2], antigo e famoso professor de direção musical na Universidade de Viena, que considerava as dinâmicas como a forma mais barata de musicalidade. Infelizmente, nos dias que correm, a dinâmica forte associada a um grande volume sonoro é considerada a galinha dos ovos de ouro, aquilo que toda a gente procura. Até a galinha deixar de pôr ovos.

 

Não só o volume e as grandes dinâmicas nos enturvam as perspetivas musicais, também as horas infindáveis agarrados aos instrumentos podem propiciar graves lesões. Hoje em dia, mais do que nunca, devemos buscar ferramentas que nos tornem mais eficazes, e estas não passam por estudar o dia inteiro com o instrumento. O estudo mental pode (e deve) ser uma parte essencial do nosso estudo (evitando sobrecarregar a componente músculo-esquelética), e assim permitir dedicar-nos ao instrumento sem as dificuldades técnicas e de leitura, evitando erros e fortalecendo os níveis de confiança.

 

Mas há também boas notícias. No passado mês de julho tive (Gabriel) a oportunidade de participar no Festival Internacional de Trombone, em Braga, e foi muito gratificante ver o interesse dos alunos pelas palestras que foram dadas, uma abordando o tema das lesões e outra acerca da performance de alto rendimento. Estes tópicos começam (felizmente) a ser mais recorrentes na educação dos jovens músicos e, pelo que pude comprovar, há um crescente interesse nestes tópicos. De especial interesse para este tema, queremos destacar o importante trabalho do músico e investigador Tiago Carvalho [3], o qual tentou consciencializar os participantes do festival quanto a lesões frequentes e às práticas que podem pôr em risco a nossa saúde/integridade. Ainda há muito caminho a percorrer, pois as lesões ainda são um tema tabu, e os músicos afetados acabam por não se sentir à vontade para procurar ajuda quando precisam. Existem, porém, entidades especializadas nesta temática e que podem ser úteis quando necessitarmos de ajuda [4] . Devemos encarar este tema como algo natural e falar abertamente para que mais colegas possam ter a devida ajuda em tempo oportuno, e assim se dedicarem novamente ao que mais gostam de fazer: música.

 

 

[1] Uma analogia entre a vibração das cordas vocais dos cantores e a vibração dos lábios dos
instrumentistas de metal.

[2] No seu livro Wahrung der Gestalt, da Editora Universal, Viena.

[3] Acerca do “Through the Process” do investigador Tiago Carvalho: https://www.youtube.com/watch?v=lV2bwwWzYnM

[4] Exemplo do Centro Internacional de Medicina nas Artes na CUF-Porto: https://www.cuf.pt/centros/centro-internacional-de-medicina-das-artes-cimart

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