Antão e quê...?

Devagar se vai ao longe

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Gabriel e Ricardo Antão

Devagar se vai ao longe

 

O tempo de confinamento a que fomos sujeitos pela COVID-19 ficará de certeza marcado na nossa memória por diversas razões, incluindo o tempo que nos deu para refletir sobre os mais variados assuntos.


Umas das reflexões mais difíceis e produtivas, mas igualmente subvalorizadas, é a da autoavaliação. Pelo menos deste lado, com a inexistência de ensaios e concertos durante o confinamento, os níveis de estudo desceram consideravelmente e, quando se estudava, não era com a qualidade desejada. Pior: com o alongar do confinamento, os maus hábitos enraizavam-se cada vez mais. De facto, é muito fácil desleixar a nossa consistente rotina de estudo e permitir que práticas menos saudáveis se imponham no nosso tocar. A aprendizagem (e estabelecimento) de bons hábitos é um processo lento e que, para dar frutos, precisa de persistência. Este processo é, na sua essência, a antítese daquilo a que somos expostos diariamente: tal é a rapidez a que estamos habituados a que tudo aconteça (especialmente a nível online), que quase desejamos e nos sentimos obrigados a ter resultados imediatos.


Mas a ajuda vem frequentemente de onde menos esperamos. Falando agora no singular, posso afirmar (Gabriel) que “ser pai é ter como filho o melhor dos professores”. Não queremos com isto incitar à paternidade como via de melhoramento musical, apenas partilhar algumas reflexões que surgiram do longo confinamento ligado a uma criança e que permitiu uma reflexão a dois para esta crónica.

Somos constantemente bombardeados com informação - especialmente em confinamento - e procuramos técnicas milagrosas para atingir resultados imediatos; mas, quando olhamos para uma criança, a verdade é que tudo se resume a simplicidade. E seguindo a ideia de simplicidade, já o brilhante físico Richard Feynman (que além de genial era também um professor e comunicador exímio) defendia um método simples que pode ser usado para aprender qualquer conceito (um método que ficou conhecido, incidentalmente, por Técnica Feynman ¹): simular que temos de explicar esse conceito a uma criança. A explicação tem de ser simples, para a criança a compreender, e assim não podemos “escudar-nos” em vocabulário complicado (que pode acontecer quando não dominamos completamente um tema); caso haja algumas falhas na nossa explicação, devemos voltar a estudar aquilo que não está bem compreendido, e após resolver os lapsos devemos organizar e simplificar tudo novamente.

 

Quiçá inconscientemente, as crianças sabem que a música só faz sentido em comunidade, e por isso os pais cantam dias a fio com as suas crianças, observando como estas repetem incansavelmente aquilo que já sabem melhor: querem memorizar os bons hábitos e estes geram confiança. Por que razão nós, adultos, pensamos que temos uma obra/excerto difícil dominado depois de o conseguir executar bem uma vez? Uma vez pode ser sorte; 10 vezes em 10 é consistência. E podemos dar o exemplo dos grandes tenistas: Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic têm, entre eles 59 títulos do Grand Slam (entre muitos outros títulos ATP), e 52 dos últimos 61. Mas isto não se deve, apenas, ao excelente nível que conseguem atingir, pois outros tenistas também conseguem jogar maravilhosamente bem. A grande diferença está na consistência com que se apresentam: o nível deles é, quase invariavelmente, altíssimo, mesmo quando não estão nos seus melhores dias.


Obrigar um músico a cantar todo o dia, é colocá-lo sob a sua própria lupa o dia inteiro, e não podemos fazer menos do que aconselhar que tentem este desafio. Para além do facto de a aprendizagem musical ser um apoio importante para que uma criança aprenda um idioma (Levitin, 2007), esta aprendizagem só fica cimentada com uma prática regular, e as crianças parecem perceber isso, pois repetem constantemente as suas conquistas musicais/linguísticas.

Tal como as investigadoras Blakemore e Frith (2005) defendem, tanto os nossos músculos como o nosso cérebro necessitam de um recalcar constante de boas práticas, se o objetivo é manter tais capacidades. Neste sentido, é pertinente relembrar que uma criança não anda de relógio e calendário na mão com metas a atingir: acredita que com o tempo as coisas resultarão. Isto não implica que sejam menos persistentes: apesar das dificuldades inerentes de aprender toda a complexidade de um idioma, as crianças voltam a tentar todos os dias. Leva à conclusão de que a persistência será de facto um dos grandes pilares na aprendizagem. Irónico como parecemos nascer com uma importante capacidade que nos é desvirtuada ao longo do nosso frenético quotidiano.


E por vezes a vida surpreende-nos. No momento da escrita destas linhas (Gabriel), ouço na rádio uma entrevista ao famoso psicoterapeuta austríaco Arnold Mettnitzer, o qual falava sobre este exato tema. Para meu agradável espanto, também ele afirmou que devíamos começar a ver os nossos filhos como os nossos próprios professores. As razões que este professor e investigador invoca são o facto de uma criança de 3 a 5 anos se conseguir animar e motivar com a mesma tarefa 30 a 50 vezes, rir-se pelo menos 300 vezes e colocar 300 a 400 questões, tudo num só dia. Ele vai mais longe, afirmando que esta curiosidade, abertura, vivacidade, fantasia (no fundo uma energia capaz de mudar o mundo!), vai sendo desconstruída à medida que crescemos e, quando chegamos a meio das nossas vidas, procuramos ajuda (terapia): esta vai fazer nada mais, nada menos, que reconectar o desconectado. Por outras palavras: dar energia, descobrir o nosso potencial que ficou adormecido, aquilo a que podemos chamar de felicidade na vida.

Fazendo um novo paralelismo, desta vez com a nossa prática diária: se apenas trabalhamos de forma mecânica e inconsciente, nunca iremos estar verdadeiramente entusiasmados a estudar. Temos que nos entregar verdadeiramente, e não ficar apenas pela superfície.

Citando novamente Richard Feynman (1985): “I don't know anything, but I do know that everything is interesting if you go into it deeply enough.” Foi preciso bastante tempo para processar estas afirmações. Mas o que pudemos retirar delas é que a energia, criatividade, paixão e ousadia são inerentes ao ser humano desde a nascença, e que não devem ser suprimidas. Essas qualidades, vejo-as (Gabriel) no meu filho e tento depois transportá-las para as minhas sessões de estudo, na esperança que possa contagiar outros com a magia que o meu filho me transmite.

 

Em suma, acreditamos que ao atrasar o ritmo agitado (ver crónica anterior) em que tudo se processa diariamente, para calmamente mergulhar no mundo de aprendizagem de uma criança, damo-nos conta de que é desta calma que precisamos para uma aprendizagem eficaz. Porém, mais do que a tranquilidade, é a simplicidade das metas a que se propõem as crianças que deve nortear a nossa aprendizagem, para que o caminho seja mais produtivo e a viagem mais gratificante.

 

Ricardo e Gabriel Antão

 

 

¹ Numa tradução livre nossa. Podem saber mais aqui: https://fs.blog/2021/02/feynman-learning-technique/ e
também em https://collegeinfogeek.com/feynman-technique/

 

Referências:

Blakemore, S. & Frith, U. (2005) O cérebro que aprende – Lições para a Educação, Lisboa: Gradiva Publicações. ISBN 978-989-616-325-9

Levitin, D. (2007). This is your Brain on Music: The Science of a Human obsession. New York: Plume. Pp. 1-12

Feynman, R. (1985). Surely you're joking, Mr. Feynman: adventures of a curious character. New York: W.W. Norton.

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