Alto e Para o Baile

Sobre a guerra aqui ao lado: “truthful, not neutral”.

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Adriana Ferreira e Francisca Bastos

Sobre a guerra aqui ao lado: “truthful, not neutral”.

 

Christiane Amanpour é uma jornalista britânico-iraniana da CNN que cobriu ao longo da sua carreira várias guerras e conflitos diplomáticos e tem um lema importante: “truthful, not neutral” (“verdadeiro, não neutro” em português). Segundo a sua explicação, “verdadeiro” significa transmitir as notícias de forma verdadeira, “neutral” pode estabelecer falsas equivalências entre facções que não estão em pé de igualdade e fabricar desculpas para as ações dos culpados.

 

Ao sentar-me para escrever a rubrica deste mês, tentar falar e pensar sobre qualquer outro tema pareceu-me vazio. Este texto será apenas uma reflexão minha, não falo em nome de mais ninguém e quando for publicado já terá sido lido por amigos ucranianos em Portugal, para garantir a sua veracidade. 

 

A Rússia invadiu a Ucrânia há uns dias. Ambos países têm culturas riquíssimas e contribuições valiosas para o mundo da arte e da música. As reações têm chovido em todo o mundo já várias instituições e artistas pelo mundo começaram a tomar posições sobre esta guerra. Outros, à semelhança dos políticos, têm medo. 

 

Valery Gergiev, um conhecido amigo do atual presidente russo, foi substituído na Tournée da Filarmónica de Viena nos Estados Unidos que começou no Carnegie Hall há uns dias e como ele Anna Netrebko, também com fortes ligações ao Kremlin, pronunciou-se recentemente contra a guerra mas diz não concordar que artistas russos famosos sejam pressionados a tomar uma posição publicamente.

 

Mesmo correndo o risco de soar agressiva e reiterando que esta é a minha opinião pessoal, discordo completamente. Já tive esta discussão sobre temas como abuso de poder, assédio sexual, entre outros. Chega de desculpas! O mundo está cheio de artistas talentosos que adorariam ter as oportunidades que estas pessoas - claro, com bastante mérito - tiveram. Não se pode ter o melhor de dois mundos - Rússia e o Ocidente - enquanto há gente a morrer no país ao lado. Não há razão nenhuma neste mundo do sec. XXI para apoiar as violações constantes de direitos humanos, que Vladimir Putin tem levado a cabo de forma calculada e organizada durante anos.

Não falamos só da mais recente afronta à paz mundial na Ucrânia, mas dos confrontos na Geórgia em 2008 e da mais recente perseguição da comunidade LGBTQIA+ na Chechénia. Isto não é cultura nem tradição. Não é identidade russa. É maldade, é achar-se Deus e agir com um ódio que não é justificável, se é que o ódio alguma vez se pode justificar! Não se pode dar abraços a um déspota e depois pedir ao mundo para continuar a pagar-lhes milhares de euros pelo seu “génio”. 

 

Em contraste, a cantora Elīna Garanča, natural da Letónia - também um país da antiga união soviética -, posicionou-se, a 28 de Fevereiro, completamente contra a guerra sem reservas e comunicou que, logo na quinta-feira, cancelou todos os seus concertos na Rússia porque considera “altamente imoral” continuar associada com qualquer evento num país que leva a cabo uma guerra criminosa como esta. Acrescenta ainda que não pode apoiar alguém que apoie Putin, mesmo que seja por se sentirem encurralados e impossibilitados de se pronunciarem de forma aberta e honesta. Isto sim é juntar a palavra à ação, perder dinheiro, manter-se leal aos seus valores e saber que o ser humano vem antes.

 

Eu não sou especialista em negócios estrangeiros, não sou diplomata nem sou ucraniana ou russa. Sou portuguesa e privilegiada, nascida depois do 25 de Abril, num país em paz e com fronteiras que são das mais antigas no continente europeu. Como residente no estrangeiro há quase dez anos, fiz ao longo dos anos bonitas amizades com pessoas de todo o mundo, ouvi histórias e aprendi a dimensão da minha ignorância.

Desde 2014, vários relatos de amigos e conhecidos da Ucrânia e da Crimeia me impressionavam, mas sempre a uma distância que agora me envergonha. Vários me contavam que, mesmo falando russo como língua materna, se sentiam profundamente ucranianos e europeus e abraçavam os seus amigos russos como irmãos. Como nós e os espanhóis. Somos diferentes, temos história em comum, somos irmãos e temos direito à independência e soberania dos nossos países.

Ainda há pouco mais de uma semana disse à minha mãe, na minha ignorância, que não ia haver guerra nenhuma, que não acreditava, que estamos no século XXI e essas coisas não acontecem... que burrice!

 

Todos temos visto relatos de crianças e famílias na Ucrânia que horas antes do início dos bombardeamentos, voltaram da escola e dos seus trabalhos como sempre e se sentaram à mesa a jantar. Num piscar de olhos, ir à escola, ir trabalhar, ir às compras, construir um futuro virou um “sobreviver ao presente”, fugir para bunkers e estações de metro, tentar atravessar fronteiras a pé e deixar os homens da família para trás.

 

O atual presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, foi eleito em 2019 com 73% dos votos na segunda ronda das eleições presidenciais, e lidera atualmente o maior país europeu. Vladimir Putin está no poder, em diferentes capacidades ao longo dos anos, desde 1999. Muito pode ser dito sobre as suas técnicas autoritárias e déspotas, mas o mais grave é o seu perfeito desprezo pela vida humana. Podemos ter todo o tipo de opiniões sobre este assunto, mas a invasão de um estado soberano e democrático por meio de força e violência, matando civis e crianças é atroz.

 

Nos links abaixo, junto com uma entrevista da Christiane Amanpour e um vídeo com a explicação do conflito russo-ucraniano que amigos ucranianos me garantiram ser fidedigno, vou deixar o testemunho recente de Martin Kimani, embaixador queniano às nações unidas que merece ser ouvido em todo o mundo. “As nossas fronteiras não foram desenhadas por nós, foram desenhadas nas distantes metrópoles coloniais de Londres, Paris e Lisboa, sem consideração pelas nações ancestrais que eles separaram. Hoje, nas fronteiras de cada país africano, vivem cidadãos com quem compartilhamos profundos laços históricos, culturais e linguísticos. Se tivéssemos escolhido perseguir a independência dos nossos estados com base na homogeneidade étnica, racial ou religiosa, ainda estaríamos travando guerras sangrentas muitas décadas depois. Em vez disso, concordamos em aceitar as fronteiras que herdámos. (...) Em vez de formar nações que olham sempre para trás na história com uma nostalgia perigosa, optamos por olhar para uma grandeza que nenhuma de nossas muitas nações e povos jamais conheceu. 

 

O delírio Putiniano de que a Ucrânia lhe pertence é tão absurdo como se a Espanha achasse que Portugal lhe pertencia, como se Portugal achasse que o Brasil e outras ex-colónias lhe pertencem ou como se a Inglaterra quisesse a Índia de volta. 

 

Para terminar, deixo uma citação da Gloria Steinem que me toca muito: “Sabe como se costuma dizer que a geração que lutou da 2ª Guerra foi a melhor? Eu acho que a melhor geração será aquela que não for para a guerra.” 

Muita força a todos os ucranianos. Bem sei que não chega, mas o meu coração está convosco e vou continuar a tentar aprender e ajudar.

 

Francisca Bastos

 

Entrevista Christiane Amanpour: https://youtu.be/Qh_xMdzeI-k

Explicação do conflito: https://youtu.be/nK-yJD_fAtk

Intervenção do Embaixador do Quénia na UN: https://youtu.be/ofijY6M-OA8

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