Sandra Bastos
Dora Rodrigues nasceu em Braga, cidade onde se diplomou no Conservatório Calouste Gulbenkian. Completou posteriormente a licenciatura na Escola Superior de Música do Porto, com Oliveira Lopes, prosseguindo os seus estudos na Côte d’Azur, com Ileana Cotrubas, em Itália, com Enza Ferrari, e em Espanha, com Elisabete Matos. Integrou o European Opera Center, em Liverpool, e a European Network of Opera Academies, em Varsóvia, com o apoio da Fundação Gulbenkian.
Foi selecionada para o conceituado BBC-Cardiff Singer of the World, onde se apresentou com a Welsh National Orchestra em St. David’s Hall, sob a direção de Paul Daniel. Colabora regularmente com o pianista João Paulo Santos, destacando-se a sua participação recente nos "Serões Musicais no Palácio da Pena". Integra o L’Effetto Ensemble, projeto de música de câmara com o guitarrista Rui Gama.
Da Capo (DC) - Como começaste a estudar música?
Dora Rodrigues (DR) - Estive quatro anos a estudar fora de Braga, pois os meus pais eram professores e estavam a dar aulas a 30 quilómetros de casa. Para conseguir estar perto deles acabei por fazer os quatro anos na escola onde o meu pai estava. A partir daí, acharam que precisava de ficar num local definido, e esse local era Braga.
Sempre fui uma miúda muito irrequieta, sempre a bater palmas, por isso o meu pai decidiu preparar-me para fazer provas para a Gulbenkian. Tinha 9 anos, caí de para-quedas numa turma que já estava junta desde a primeira classe. Aprendi alguma coisa dois meses antes de fazer as provas, pois ia ingressar diretamente no primeiro grau de piano e tinha que mostrar alguma coisa.
O meu pai sempre esteve ligado à música. Estudou música quando esteve no seminário, o que acontecia com muitos minhotos, por isso tinha a noção de que eu tinha de ter alguma base para a minha idade. Tive aulas, fiz provas, entrei e foi aí que começou toda a viagem.
Nos primeiros meses foi complicado porque os meus colegas já estavam habituados a assistir a concertos, eu não tinha nada disso a não ser o que fazia em casa com o meu pai. Percebi que aquilo era um prazer e, rapidamente, passei a entrar naquele mundo. Entrei no Ballet, o que para mim foi fantástico porque me ajudou imenso na postura, no conhecimento dos músculos do corpo, no controle. A Gulbenkian, que na altura era uma escola-piloto, tinha a vantagem de ter o ensino integrado. Hoje já muitas escolas fazem isso mas para mim foi fulcral porque como os meus pais trabalhavam fora, não podiam andar comigo de escola em escola, se calhar não iria conseguir ter o apoio que tive na Gulbenkian, já que tinha lá todas as disciplinas e podia ocupar o tempo livre a estudar.
Mais tarde começaram a fazer as atividades extracurriculares, onde havia o coro. Foi aí que a minha voz começou a destacar-se um bocadinho e eu comecei a perceber que, se calhar, num coro, tinha de ter mais cuidado porque se ouvia demais. Mas, por outro lado, fez com que eu investisse mais na disciplina de Técnica e Repertório Vocal (era assim que se chamava na altura).
DC – O Canto foi óbvio?
DR - Eu comecei pelo piano e fiz o 8º grau, mesmo quando já estava na ESMAE, voltava a Braga só para terminar o piano. Era uma paixão minha e também me ajuda muito hoje, porque consigo estudar e acompanhar-me.
O Canto surgiu quando eu tinha uns 15/16 anos, porque o meu corpo também estava definido. Então, ao estabilizar em termos corporais, a minha voz amadureceu, assumiu uma vibração diferente para os meus colegas, sobretudo na disciplina de Coro, com o maestro António Baptista, que me mandou cantar sozinha numa aula e me disse, depois de me ouvir, que eu tinha de investir na disciplina de Canto. Era uma sensação boa, de ter uma voz com algum poder dentro de mim, era engraçado e o facto de depois ter ido para a disciplina de Canto.
A primeira audição foi uma revelação, o facto de estar de frente para o público, a comunicar (nas audições de piano estamos na lateral e não de frente como no Canto). O facto de ter esse contacto e ser quase um contador de histórias, era como jogar ao faz-de-conta. A minha timidez também se esvaía, e acabava por vir a personagem que estava a interpretar.
DC - O que te encantava era essa transformação ou a música e si?
DR - Era tudo! O que tem de bonito no Canto, sobretudo na ópera, é o facto de haver tantas componentes à volta do que é a música em si. A música deve ser tratada logo de início como se fosse uma obra de solfejo, depois tratá-la tecnicamente, como a vou pôr no meu corpo, e só depois é que eu vou ao texto e à musicalidade – o corpo já está preparado para receber essa informação. Para mim era um desafio, o passar vários estádios até chegar a altura de interpretar.
O Canto para mim tornou-se algo muito cerebral, que fui aprendendo ao longo do meu percurso. Eu tenho já alguns anos disto, também porque comecei muito cedo.
DC – Quando te estreaste na ópera?
DR - Tinha 18 anos quando fiz a minha primeira ópera, a Carmen, no Coliseu do Porto. A Elisabete Matos fazia o papel da Micaela, com a direção do saudoso maestro Ivo Cruz. Logo depois o São Carlos fez uma produção para jovens e eu fiquei. Foi tudo muito repentino. Depois comecei a fazer concursos, fiz uma produção no Canadá... de repente apareceu muita coisa. Tive de aprender a ter resistência. Tive pessoas que foram santas na minha vida. Tive muita sorte, acho que devemos ser agradecidos a quem nos deu a mão e a quem, mais do que nos deu elogios, nos criticou.
Uma das pessoas por quem tenho um carinho enorme pela ajuda que me deu foi, sem dúvida, a Maestra Enza Ferrari, a quem eu digo que é a minha "mamma de la musica". Foi uma pessoa que me abriu os olhos, não só em termos de repertório, mas ajudou-me a adquirir maturidade. Agradeço igualmente aos professores e direcção da ESMAE pelo apoio incondicional quando, ainda aluna, já fazia bastantes produções e, no entanto, sempre me davam uma ajuda extra.
A oportunidade de me fazer em palco com pessoas como a Eva Marton, quando me estreei no palco do São Carlos. Nunca mais me esqueço quando ela chegou à minha beira, aquele mulherão que era e é a cantora que sempre foi, e disse-me: “Dora, canta con gl'occhi”. São pequeninas coisas, que me deixavam a pensar, ou seja, todas as críticas e elogios que me davam, eu tentei sempre incorporar e tornar aquilo em algo positivo e construtivo. À Elisabete Matos por todos os ensinamentos e dedicação.
A minha voz sempre, desde miúda, pediu um repertório mais pesado e o facto de ter tido sempre a ajuda do maestro João Paulo Santos, da Elisabete Matos, do professor Oliveira Lopes, quando estava na ESMAE, da Enza Ferrari, da Ileana Cotrubas, que me levou para Côte d'Azur e eu ficava lá dias e dias e dias no estúdio dela, foi fundamental.
Eu acredito que a voz é como um instrumento, que está definido desde o início, o repertório é que não está definido porque ainda não há a maturidade vocal para poder afrontar esse repertório.
Só agora estou a chegar à idade em que posso realmente afrontar.
DC - É fundamental conhecer-se a si própria...
DR - Claro! Trabalhar naquele sentido... Hoje há muitos cantores, gente com muita qualidade, antigamente não era tanta gente, mas havia mais cuidado. Agora assistimos a produções que são feitas à "fast music", que são produções feitas em duas semanas, sem tempo de paragem. Na altura de outros maestros, cantores e encenadores isso era impensável.
Tem de se dar tempo, noção, do que se pode aceitar e até onde se pode ir, isso faz com que no estudo nunca se aborde repertório que nos pode levar tecnicamente por um caminho errado.
DC - Essa gestão implica o conhecimento muito profundo de si próprio. Neste caso ter uma boa equipa de orientadores pode fazer toda a diferença numa carreira?
DR - Sim, eu acho que um cantor precisa de um professor para toda a vida, porque precisa de um ouvido externo. Isso é muito importante porque muitas vezes a sensação que nós temos, não é propriamente aquilo que sai. A igualdade da vocalidade, a igualdade tímbrica da voz tem de ser sempre a mesma. Eu não posso fazer um grave muito largo, a soar como um instrumento e de repente ao ir para o agudo, soar como uma coisa estridente. Tem de haver uma ligação. Se isso acontece quer dizer que em termos técnicos eu estou a fazer mal, porque se eu faço estridente quer dizer que não tenho a abertura suficiente, quer dizer que a laringe vai subir, que eu vou criar pressão sobre as minhas cordas, isso vai ser prejudicial a longo prazo.
DC - Neste processo de aprendizagem, o que é que aprendeste de fundamental em cada local por onde passaste?
DR - Com Ileana Cotrubas, foi a noção do que é cantar em máscara. Ela dizia sempre para levantar as maçazinhas do rosto como se fosse uma balança. Eu achava uma delícia. Equilibrar a balança, que é uma expressão muito engraçada que a Elisabete Matos também usa. Ela é uma mulher pequena, mas com uma noção do que era a largura da respiração e do corpo, que fazia depois que se conseguisse adaptar a qualquer instrumento. Nós somos todos diferentes mas a base é a mesma. Temos de nos ajustar a cada instrumento que nos aparece à frente e a cada corpo, cada fisionomia. Isso fez-me sempre estar atenta. Parece uma coisinha que não tem muita importância, mas fez-me perceber que um bom professor pode ser bom para uma pessoa mas para outra não, porque os instrumentos são diferentes e a nossa percepção e entendimento são diferentes. Compete a nós cantores assimilarmos a informação e ajustarmos ao nosso corpo.
O facto de sabermos que não é algo absolutamente matemático, que sirva para toda a gente, que toda a gente veste a mesma camisa, fez-me estar atenta, que tenho de ir buscar o que preciso a vários lados. Isso é também uma certa posição de honestidade e humildade perante o que é a técnica. Estou sempre a aprender, porque o meu repertório foi mudando, vou acrescentado um e tirando outro. Tenho sempre camisas que vou ajustando conforme a necessidade.
As pessoas que mais me ajudaram a definir repertório foram várias.
A Elisabete é uma pessoa por quem tenho um carinho enorme, é também bracarense, conheço toda a família dela. Estudei com familiares dela, o meu primeiro professor de música foi o Prof. Matos, tio dela, ou seja, eu conheço a família toda muito antes de a conhecer. Por isso quando nós nos conhecemos foi engraçado porque já havia muita coisa em comum. Tenho uma grande admiração por ela, pela performer que é e por ser uma grande referência no mundo lírico. O facto de termos raízes parecidas, termos uma linguagem com a qual nos entendemos, é normal, acho que os minhotos têm este lado generoso, afável, falam imenso mas têm uma linguagem muito própria. Também sabem amuar muito rapidamente! (risos)
O facto de ser também uma pessoa que percebe isso, facilmente nos entendemos. Ela percebeu desde o início que a minha voz era uma voz que estava a crescer, que tinha um certo carisma e que tinha de ser incutido em mim uma certa paciência, muito estudo técnico, até chegar à idade em que posso fazer o repertório certo.
DC - Podemos dizer que de certa forma estás agora a começar a tua carreira?
DR - Sim, estou. Tenho a noção que estive muito tempo a fazer coisas que foram desafios e me ajudaram a ter saúde vocal, brilho que é necessário, porque o repertório sendo prematuro poderia criar problemas técnicos irreversíveis. O facto de ter tido essa noção, de ter sido chamada a atenção, de saber qual é o meu limite e trabalhar só até o meu limite, ajudou-me a ter saúde vocal.
DC - E qual é o teu repertório?
DR - Nesta fase, tenho de começar a abordar mais Puccini, o primo Verdi, o Donizetti mais pesado, as rainhas... Já fiz uma abordagem das quatro últimas de Strauss e percebi que é por aí que tenho de começar a ir. A voz está a começar a pedir isso. Mas é a tal questão, se não se tem brilho, a técnica no sítio, é um repertório que não se consegue fazer nem ter a resistência para o fazer, não se consegue manter. Por isso, com calma, não pode ser tudo de uma vez, vou pondo as obras no corpo e deixar amadurecer, está na altura. Já tive de dizer não a muitas coisas e custa dizer o primeiro não, mas teve de ser e não me arrependo.
DC - E agenda para agora?
DR - Posso anunciar que é um repertório que se adequa ao que estou a dizer, é um repertório grande, com uma orquestra que pede algum brilho, uma orquestra grande e forte mas pelo timbre e não pela força. E para mim vai ser um grande desafio! Será o Diálogo das Carmelitas, que é uma obra fabulosa, não só pela temática que é pesada, com bastante texto mas também pelo repertório em si, pelo tipo de escrita, pela orquestração, ou seja, vai exigir bastante.
Tenho também um projeto na Gulbenkian, com a Orquestra, que me vai dar muita satisfação, que é Villa-Lobos. É um sítio que me traz belíssimas recordações, adoro ir lá!
Eu cheguei à Gulbenkian de forma curiosa, não como uma portuguesa que veio fazer uma audição, mas porque tinha sido selecionada para o BBC Cardiff Singer of de World e então, por causa disso, vim cantar a Portugal. Por causa de um trabalho que fiz lá fora, foi engraçadíssimo!
Tenho de dizer uma coisa que é algo novo e que se torna bem mais difícil – no meu ano foi introduzida uma regra em que as finais são definidas por conjuntos, ou seja, os finalistas não são todos iguais. Sai uma pessoa de cada grupo! Lembro-me perfeitamente que fiquei num grupo que tinha um tenor italiano e quando há um tenor, tudo pára! (risos). Era um tenor muito jovem e talentoso, sem dúvida!
Nós tivemos a oportunidade de falar com cada elemento do júri, então o Jaume Aragall disse-me: Vou-te mostrar as minhas notas, a voz feminina mais bonita és tu, pena que tenha um tenor no teu grupo. Eu sou um tenor, minha cara! Assim é muito mais difícil conseguir singra-se!
Voltando atrás... Entrei na Gulbenkian exatamente por esse contacto! Foi muito importante para mim porque se não tivesse existido um Gulbenkian, se calhar hoje não seria cantora, porque não tinha tido uma escola em Braga como ele tinha feito questão. Braga também não seria a mesma, talvez como Aveiro também não teria sido a mesma. Ainda hoje, somos o que somos, graças àquele senhor! Por isso senti um orgulho enorme ao entrar naquela casa.
DC - E quanto aos restantes projetos?
DR - Tenho outro projeto que é muito bom para mim, pelo qual tenho um carinho muito grande, por ser um trabalho pessoal, que é o L'effeto Ensemble. É uma formação que nasceu por ser das formações mais antigas que existem, desde a altura dos trovadores – acompanhar voz com alaúde, neste caso com guitarra, e com o guitarrista Rui Gama. Esta formação não tem sido muito explorada, não só em Portugal, mas também a nível europeu, contudo está a ser agora a ser redescoberta e há muita gente a escrever para esta formação.
Fomos agora convidados para tocar no Festival de São Roque, um festival que tem tido bastante nome e onde vão as grandes formações. Realiza-se num espaço belíssimo, que é pensado exatamente para esta formação, com uma acústica generosa e que me está a dar um gozo particular porque estamos a poder convidar alguns compositores portugueses para escrever para esta formação.
E aqui vem esta minha vontade de dar um contributo, porque nós temos coisas belíssimas na música portuguesa, se virmos pelo mundo fora, todos os grandes cantores têm algo do país para mostrar e nós temos coisas de que nos devíamos orgulhar muito mais, não por coisas feitas agora mas também pelas mais antigas – há tanta coisa que ainda está nos caixotes das bibliotecas.
Nós temos cá um grande músico português que é dos que mais se preocupa com isso e que tem contribuído muito para venham à luz do sol, que é o maestro João Paulo Santos. A quantidade de óperas que ele vai buscar e que se dá ao trabalho de passar a computador, para que os cantores não se assustem ao ver aquilo em manuscrito. Nem sequer há apoios para conservar essas partituras, em caixotes próprios para não se deteriorar.
Como te disse estou neste momento a refazer-me. O meu agente principal, Giuseppe di Matteis faleceu no início deste ano, de repente, por isso foi um ano complicado. Continuo com a agência em Itália mas ainda estou a refazer-me exatamente na altura em que estou a mudar de repertório.
Eu vejo sempre as coisas como tendo um porquê, por exemplo está neste momento a fazer com que eu descubra muitas coisas, estou a pegar no meu novo repertório e mostrar-me outra vez. Está a ser engraçado porque acabo por encontrar pessoas que na altura até tinham demonstrado interesse em estar comigo e ao voltar agora com outro repertório e verem-me de outra forma, mais madura, mostram interesse. Está a ser muito giro.
Mesmo em relação ao meu CD, com a Royal Liverpool Philharmonic. Na altura fui fazer uma audição a Munique, andavam à procura de uma jovem cantora, uma jovem soprano com corpo de voz. Eu estive no European Opera Center, onde cantei com a Orquestra de Jovens da União Europeia, foi engraçadíssimo chegar lá – também há um CD desse concerto, gravado ao vivo em Londres.
Uma pessoa vai fazer uma audição, consegue uma produção que é para gravar em CD ao vivo em concerto, é um stress extra – é um CD que nunca chegou a Portugal! Está à venda no Scala! Eu sou muito má para essas coisas, não me sei vender.
Quando estou cá é para estudar e ir ter ao São Carlos, com aquele equipa de pessoas fabulosas, sempre com um sorriso para nos oferecer – isso é o que mais me interessa e não saberem o que gravei...
DC - Mas nós queremos ouvir!
DR - Sim, tens razão.
Mas é interessante como é que vais fazer uma audição, fazes uma gravação, esta pessoa estava como diretora do European Opera Center, que é o Estúdio de Ópera paralelo à Orquestra da União Europeia, ou seja, é exatamente o mesmo projeto, com o grande maestro Vasily Petrenko. Para mim, trabalhar com ele foi fantástico!
DC - Costumas dar-te bem com os maestros?
DR - Sim, é sempre aquela preocupação de perceber qual é a ideia musical e como corresponder àquilo que nos pedem, sempre com a consciência que não podemos altera a técnica para o fazer e isso às vezes é que é complicado. Há muitas pessoas que têm essa preocupação mas acabam por tecnicamente ficar aquém e quando nos apercebemos, sentimo-nos mais cansados. Temos de ter essa preocupação de que tudo o que se faça é a partir do corpo e de ser o mais cerebral possível. Mas eu sou muito descontraída, isso tem a ver com os minhotos, por isso não tenho nenhuma história mais complicada.
Custou-me uma vez cancelar, foi a única vez que cancelei na vida, por ter ficado doente, daquelas coisas que podem acontecer mas custa imenso, mas mesmo assim, o maestro disse “eu sei, foi a primeira vez que te aconteceu, não foi? Dizer não é o que mais custa na carreira”. E é verdade.
DC - Sentes que os “nãos” que tiveste de dar ao longo da carreira te fecharam portas?
DR - Sim, tenho consciência que se calhar num ou noutro sítio posso ter sido mal interpretada. Fi-lo por achar que não era a altura certa, não era o meu repertório e as pessoas podem confundir o timbre da voz e achar que estamos preparadas para fazer um certo tipo de repertório. Por muito que se possa explicar, pode haver essa confusão com a falta de vontade de trabalhar com a casa. Temos de correr esse risco com a consciência tranquila porque o que eu gosto de fazer é cantar e quero fazê-lo por muito tempo.
DC - Houve algum não que te tivesse custado mais?
DR - Houve um que foi uma produção belíssima de um Così fan Tutte. Eu ainda não estava preparada e também só posso fazer algum Mozart. Tinha de esperar exatamente pelos papéis que poderia fazer. Foi uma Fiordiligi que me veio cedo demais e eu tiver de dizer não.
Além de dizer não a esse papel tive de dizer outro - porque me ofereceram outro papel - mas eu já sabia que havia pessoas destinadas, com convite formulado e eu achei que não era justo. Mas isso sou eu, porque gosto de me deitar todos os dias na minha almofada sempre com a sensação que no dia seguinte vou ter um sorriso.
DC - Mas não é fácil gerir o ambiente no mundo dos cantores líricos. É verdade ou é mito?
DR - Eu acho que não é propriamente um mito porque existe mas eu acho que é muito mais exacerbado do que aquilo que realmente acontece. As pessoas gostam de viver os mitos, mas na prática não acontece tanto. Claro que o ambiente de audição é complicado principalmente como acontece hoje que é tanta gente a cantar bem, que muito facilmente estás a fazer uma audição com alguém que já gravou para a DECA. E pensas como vais lidar com isso.
DC - As cantoras tem que ser atrizes e isso mexe emocionalmente com as pessoas…
DR - Mexe muito, porque qualquer estado de espírito que tu tenhas mais alterado nota-se sempre na voz. Tu até podes estar com uma pessoa ao telefone, e sem ver a cara, sabes se ela está bem-disposta, se esteve a chorar…
Nós temos um instrumento que tem um coração no seu cérebro, e tens que saber controlar os teus sentimentos para que isso não te afete a ti nem ao teu instrumento, pois cria instabilidade. Essa instabilidade pode ser interpretada por algum divismo ou ser mesmo mal interpretada, porque eu acho que quem vive sabe que é complicado, visto que, qualquer coisinha te pode alterar.
O cantor dá a cara constantemente e o sorriso tem que estar lá, por isso, é natural que em certos momentos se note mais o seu feitio, o seu cariz, o seu caráter e isso pode ser levado a uma certa instabilidade e ao divismo do cantor. Mas também pode ser uma fragilidade porque é um instrumento que não está sempre igual: um dia és uma coisa e noutro dia outra, porque o nosso corpo está preparado de maneiras diferentes.
DC - Tens algum suporte que te “segura na terra”?
DR - Sim, claro. E chego outra vez à técnica e a toda a tua envolvência desde do ambiente em casa, do meu fantástico marido, da minha querida família e dos amigos porque o cantor tem que ser mais do que aquele que vive só para aquilo. Tens que trazer algo dele para o teu instrumento. Tens que ter vivências e, culturalmente, estar aberto para várias coisas, desde a pintura e muita literatura. Um cantor tem que ler imenso, tem que estar sempre a par do que está a sair, dos libretos, de onde se foi buscar a história.
Ainda não conheci um cantor que não gostasse de cinema, por exemplo, de literatura e até de moda! Eu sou apaixonadíssima pela moda.
DC - Para a escolha dos papéis também deve pesar o aspeto físico, não?
DR - Sim, hoje em dia é. Porque cada vez há mais produções a serem transmitidas através da televisão como o MET.
Não podemos é pensar que a imagem seja fulcral, pois acho que começa haver alguns exageros. Mas, sem dúvida, que aquele mito da cantora com o corpo avantajado não existe, até porque não é pelo facto de se ser assim que se tem mais ou menos voz. Pode-se, isso sim porque já tive uns quilinhos a mais, ter uma perceção diferente de como o teu corpo está a trabalhar, porque como tem mais volume sente-se mais o trabalho que estás a fazer.
Agora, sem dúvida, que o cantor acaba por se apaixonar por muitas outras áreas. E quando falei da moda, cada vez mais os espetáculos de apresentação de coleções, são todos eles uma mise-en-scene porque é tudo um espetáculo em si, com encenação, fotografia…
DC - Começamos a ver as cantoras líricas que tem o seu costureiro, cabeleireiro…
DR - Sim, mas no fundo é porque é um espetáculo, é um mundo de faz de conta mas é um mundo do belo.
Há cada vez mais cantoras a fazerem parte desses espetáculos porque dantes era um nicho à parte, onde poucos entravam. Eu vejo nisso algo como abrir as portas da ópera e desmistificar este mundo que parece tão elitista.
Os cantores líricos hoje em dia misturam-se muito mais com outras áreas da cultura e, isso só denota que nós estamos cada vez mais ligados ao mundo.
Ainda há pouco tempo vi a Eunice Munoz rendida à soprano Elisabete Matos ou uma Meryl Streep a chorar quando ouve uma Callas, porque são duas áreas que tem a noção do que é o trabalho, do que é o belo e do que é o rigor. Então, sabem analisar e avaliar que aquela senhora passou muito além do que é o rigor!
No fundo é: dar arte e alma aquilo que se faz. É muito importante colocar alma naquilo que se faz, com a noção que se precisa de técnica para o fazer. Só assim é que se consegue tocar o público. A diferença está no cunho pessoal.
Acho que esta é uma postura sempre de trabalho. Tu nunca consegues chegar lá quando estás sempre a lutar para chegar lá.
DC - E trabalhas a observar qualquer coisa que cante, como um pássaro?
DR - Completamente! Tudo o que está à minha volta é material de trabalho. Até uma simples viagem para ir ver o mar, em que recarregas baterias, para chegar a casa e trabalhar mais duas horas. Ou sentares-te na esplanada de um café a traduzir o libreto que vais cantar, porque a tradução é muito importante para um cantor para saber qual a ideia que está a ser exprimida naquela frase.
DC - Também é importante para ti saber a vida do compositor?
DR - Claro, claro! Por isso é que é uma delícia trabalhar com o João Paulo Santos, por exemplo. Chegamos ao primeiro ensaio e ele tem imensas histórias fantásticas para nos contar, porque ele lê tudo e mais alguma coisa, e tem imensas curiosidades sobre o programa que iremos interpretar e isso aguça o apetite para, terminado o ensaio, queres saciar essa vontade em saber mais.
A vida para muitos pode ter excesso de lirismo, mas para mim tem muito de belo.