Crítica Musical

"Improbabile" de Ricardo Pereira e Erica Versace

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Nuno Jacinto

Dois instrumentos de constelações divinas poderão unir-se sob o mesmo astro e conceber harmonias de pulsões suficientes de fazer brotar maior desígnios que apenas uma tentativa artificial – de estúdio - de um duo “improvável”? É esta a questão que o novo trabalho discográfico de Ricardo Pereira ao trombone e Erica Versace na harpa trazem ao público melómano. “Improbabile” é uma proposta arrojada, que na justificativa dos seus autores, é uma clara busca de “novos ingredientes, novas ideias e nova música”. Um pouco de cada, mas já lá vamos.

 

À parte da sua principal premissa – a instrumentação - este trabalho discográfico traz-nos uma selecção de repertório firmado, partindo inicialmente de um repertório fin de siécle. As “Quatre Morceaux” op.56 de Anton Arensky, obra originalmente escrita para violoncelo e piano, é de uma franca candura melódica, cujos quatro andamentos embora poucos distintos de uma contínua eloquência romântica e velocidade compassada, propõe quatro ambientes característicos: Orientale, Romance, Chant Triste e Humoresque. Na versão arranjada por Ricardo Pereira que o duo nos apresenta, temos o primeiro embate das características tímbricas e idiomáticas dos dois instrumentos: o trombone por um lado, assume o papel do violoncelo, como tal não poderia deixar de ser, e a harpa como instrumento polifónico, a parte de piano. O resultado é um: escolhendo andamentos mais calmos que o original, o trombone apresenta-se domado no seu poderio dinâmico sendo um eloquente mas contido solista, enquanto que a harpa assume o seu papel de sólido acompanhador, sem se destacar verdadeiramente. Isto é principalmente claro no último andamento da obra, finalizado num ponto morno.

 

Por seu turno, nas “Deux Romances” de Claude Debussy temos uma tentativa mais declarada da verdadeira simbiose deste duo “improvável”: com duas canções para voz e piano, o trombone finalmente assume-se como um expressivo cantor de grandes arcos melódicos dando uso também à sua capacidade dinâmica e com a harpa assumindo na textura uma maior prominência e sendo, assim, uma companheira verdadeira de dueto.

 

A surpresa residirá nos “Sete Prelúdios” originais para Piano de António Fragoso. O arranjo apresentado aqui dá-nos uma outra luz sobre a obra original: Ricardo Pereira estabelece o trombone na linha melódica mais distinta da obra, mas dá-lhe novos contornos, mais ricas e inventivas para o seu instrumento, como se comprova logo no primeiro prelúdio. Nos seguintes andamentos, o caminhar conjunto dos dois instrumentos embalam-nos na ingénua mas frondosa música do jovem Fragoso, com momentos altos tanto o terceiro e sétimo prelúdios embora com alguns momentos desapontantes, como no final do segundo prelúdio ou o quarto prelúdio.

 

Numa clara segunda parte do trabalho discográfico, caminhamos por outros imaginários geográficos. No primeiro caso, temos as “Quatro Valses Venezolanos”, porventura a obra mais tocada do compositor e guitarrista venezuelano, Antonio Lauro. Desconhecido do grande público, o seu repertório é amplamente reconhecido no outro lado do Atlântico e muito popular no público apaixonado pela guitarra clássica. Dito isto, este arranjo mais uma vez bem construído de Ricardo Pereira, retira-nos a acutilância da linha melódica aguda de uma guitarra beliscada para ser moldada num trombone no registo médio-agudo e pequenos glissandos. O poder de transformação desta versão é suficiente para absorver os paladares sul-americanos destas valsas, algumas legendadas com nomes de rapariga – ó Lauro, como nos mimas! – e fazer-nos bater o pezinho ao estilo criollo da obra original.

 

Logo, chegamos à obra inaugural desta formação - “Improbabile” de Ricardo Pereira, que nos proporciona uma “alusão das nacionalidades dos dois músicos”, portuguesa e italiana, esclareça-se. Se podemos aceitar a narrativa dos autores, podemos sentir nos quatro andamentos da obra uma alternância de ambientes bastante familiar. O primeiro andamento é timidamente expositivo em modo menor (“L’alba”), que deambula por entre por glissandos pendulares em quarto de tom, finalmente assumindo uma luminosidade solar com a mudança para modo maior a meio do andamento, com um acompanhamento arpejado constante na harpa até que a mesma assume o epílogo do andamento. O segundo andamento (“Lontano”), lento, introspectivo e propositadamente “distante”, o trombone apresenta novamente o leitmotif de glissandos pendulares, mas com uso de surdina e multifónicos...algures no Éter. Na secção intermédia, o trombone abre a sonoridade, assumindo a dianteira, numa harpa mantida na retaguarda – infelizmente! - em todo o andamento. Num movimento circular, o trombone, retoma o ambiente inicial até desaparecer. O terceiro andamento (“Entre um Tango e uma Valsa”) é claramente o nosso andamento dançante, onde o aroma de Piazzolla está mais que presente: é uma reconstrução do nuevo tango, onde de valsa muito pouco se sente...bem mais de um walking bass em certos momentos! Por fim, o último andamento (“Tarantella”) traz-nos uma construção agridoce não frenética, embora quase burlesca da tradição sulista de Itália, e que apesar de alguns rasgos de inspiração e até percussão corporal, não cativa como a velocidade estonteante da dança tradicional.

 

Por fim - but not the least! – temos a obra original do compositor e saxofonista suíço Daniel Schnyder, que apesar de não ser em estreia, apresenta-se em gravação pela primeira vez aqui, segundo os nossos intérpretes. Mas que obra! “My Garden” (O meu jardim) faz uma clara exploração idiomática e virtuosa dos dois instrumentos, numa obra em cinco partes claras: na primeira e terceira partes, o trombone dialoga melancolicamente com a harpa, aromatizando a peça com diferentes néctares de flores variadas; a segunda parte um verdadeiro solo para harpa, e um dos momentos mais belos e destacadas de Erica Versace, como um nenúfar jovem no meio de um lago. A quarta parte, como picos implacáveis de uma tenra rosa, é brusca, frenética e acentuada, que se fecha bruscamente num ápice, ligando-se à quinta e última parte: a chegada ao Éden, no crepúsculo dos sentidos, com uma ninfa a entoar uma melodia inocente. O compositor podia bem deixar-se ficar aqui, sem ter de retomar parcialmente a parte frenética, pois neste “jardim” reside a pérola apaixonante desta peça.

 

E a nossa questão inicial, como se responde? Este duo de poucas probabilidades tímbricas terá comprovar os seus reais atributos nos concertos ao vivo que com certeza aí virão, mas deste trabalho partimos deliciados pelas pinceladas de qualidade, moderação e verdadeira simbiose artística. Pois é no franco equilíbrio das forças de ambos, que reside o seu principal atractivo.

 

Nuno Jacinto

Abril 2021

www.nunojacinto.com

O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.

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