Crítica Musical

Lux e Umbra de Frederic Cardoso

 — 

Nuno Jacinto

Sete sombras do Presente, sete janelas de luz do Futuro. Assim almeja ser “Lux et Umbra” (Artway Records), o último trabalho discográfico lançado ainda no final de ano de 2021 pelo clarinetista Frederic Cardoso, um dos mais brilhantes valores da nova geração de instrumentistas do Norte do país, onde o Clarinete é rei e senhor. Já com um currículo impressionante de mais uma de uma centena de obras a si estreadas e dedicadas, Frederic Cardoso assume para si o fardo de ser o fundador e ao mesmo tempo, promotor de todo um acervo de obras representativas das sucessivas vagas de jovens compositores que este país tem conseguido formar com qualidade e ensejo, apesar do seu já secular hábito de não os apoiar devidamente numa carreira digna e duradoura. Esta escolha de um nicho de repertório será suficiente para construir um trabalho discográfico substantivo?

 

Duas peças destacam-se neste trabalho discográfico, pelo uso da voz como personagem musical (imaginária ou real) sugerindo nestas criações, um entrosamento camerístico de especial fulgência entre o clarinete baixo – instrumento favorito deste disco, pelo distinto virtuosismo que Frederic Cardoso apresenta neste instrumento – e a electrónica. A primeira peça, “Limen” de Rúben Borges provoca-nos logo de início, uma audição dobrada e ampliada em dois universos sonoros distintos: por um lado, a electrónica reverberante e húmida nos sussurra, nos fala indistintamente e nos afunila numa paisagem sonora vocal, urbana e distante; e por outro lado, o clarinete baixo aqui flutua, respira e assinala a sua presença gradualmente fixa e sonora. Embora estes dois universos coexistam, nunca parecem tocar-se verdadeiramente, numa audição oblíqua. É neste limiar (“limen” em latim?) formal que nos sentimos caminhando, num deambular bastante previsível entre secções de electrónica e secções de acústicas. Frederic Cardoso destaca-se aqui com uma límpida execução de multifónicos no clímax da peça, que nos faz ansiar pelo que encontraremos mais adiante neste disco. A segunda peça “vocal”, “Pranto” de Carlo Brito Dias é em contraposição, uma imersão permanente e profunda de diferentes intervenientes. Num ambiente discursivo eminentemente poético e sensitivo, a electrónica narra-nos um poema da autoria do compositor, fornecendo o fio condutor de toda a peça. O “pranto” está, no entanto, verdadeiramente retratado na voz da Ana Santos, que não só entoa as emoções de dor e a fragilidade humanas patentes em toda a peça, como estabelece por fim, um diálogo com uma voz imaginária, num final tocante. Ao Clarinete baixo é dado um papel subserviente, exceptuando no zentih desta peça: um momento particularmente emotivo e magistralmente bem conseguido, onde o clarinete recorta uma linha melódica de pendor cerimonial e arcaico, de apelo a um passado irrepetível e a voz nos confessa: “Porque neste pranto, /sério e franco, /contrario esta luta inglória/ uma lenga-lenga das estórias, /e luto, com o luto a trair”. O apelo à emoção - uma das premissas mais recusadas pela música contemporânea de grande parte do século passado - neste novo século já com duas décadas, está viva, saudável e aparentemente imparável. A obra “Pranto” junta-se assim, a um importante repertório contemporâneo de renovação do pathos musical.

 

A única obra inteiramente acústica situa-se precisamente a meio caminho deste disco, “Ékleipsis” de Bernardo Lima. Escrita para o instrumento mais curto da família do Clarinete, a Requinta – outro dado único – é uma peça fulminante, um raio de luz incisivo numa parede sem reverberações, com apenas rugosidades analógicas. E que clarão: num início fragmentado e brincalhão, Frederic Cardoso demonstra desde logo, a sua perícia em dominar um instrumento, que à parte de algum uso em orquestra de sopros ou sinfónica, é demasiadas vezes relegado à penumbra de uma noite parda. Mas há salvação, com este “eclipse” gradualmente luzidio: a combinação de motivos alternadamente contrastantes, conduz-nos com insistência a notas mais longas e frases mais constantes. Mas a acalmia é apenas aparente: logo, a Requinta nos propõe um eclipse total, onde a coroa solar resultante se traduz em rápidos motivos descendentes no registo extremo agudo do instrumento. Por fim, o sucinto epílogo nos recorda - como num acontecimento lunar – que a peça está nos seus últimos momentos e que tudo se resume à memória e à recapitulação dos motivos iniciais.

 

Outro dado único deste disco está no facto curioso de atribuir apenas uma obra ao mais destacado instrumento da família do Clarinete, o próprio patriarca. Esta distinção está na obra “Stereochromatic” de João F. Ferreira. Numa obra de quente infusão da electrónica com o clarinete, o compositor propõe-nos uma electrónica estruturalmente tripartida, onde a primeira e terceira secções são claramente espelhos (em estéreo) uma da outra e uma nota bordão grave assinala essa simetria. Perante isto, o clarinete de Frederic Cardoso será um verdadeiro malabarista e contra-peso destas secções: na secção inicial de harmonia claramente em tons inteiros, o clarinete incute desde o primeiro momento a uma expectativa de crescendo, de empolgamento, que se vai realizar no atingir do registo agudo do clarinete e num pulsar rítmico da electrónica. Eis que aparece o primeiro bordão grave na electrónica e nos conduz à secção central: a luminária aplicação de ruído branco, numa cascata sonora impulsionadora de uma gradual ambiência harmónica, desemboca numa cachoeira onde o clarinete trina o seu canto em pequenos glissandos descendentes. O canto é desfeito e prolongado, até que um ostinato de cinco tons na electrónica provoca o clarinete num discurso balbuciante, incomodado e exasperado. O murmúrio do clarinete prolonga-se em trilo até que o segundo bordão na electrónica se faz ouvir: os multifónicos aparecem, pequenas frases de inconformismo ainda persistem, caminhando em retrogradação para o fim da peça.

 

Retomando o clarinete baixo, duas peças destacam-se na sóbria exploração da electrónica como ampliação do instrumento: ou como imagem negativa e subtractora, ou como imagem reflectora e multiplicadora. Na primeira exploração encontramos “Sobre o contorno” de Rodrigo Cardoso. Esta peça é de uma subtileza desconcertante e nada temerária do aparente silêncio, do aparente negativo do som. Originalmente criada para ter componente vídeo – uma dimensão que nos proporcionaria, indubitavelmente, uma percepção bem diferente – aqui, só podemos tactear o som. E para nos orientarmos, fixamo-nos no exímio clarinete baixo de Frederic Cardoso como nosso foco de luz, como nossa certeza de percurso. Caminhamos, tacteamos em gradual tropeçar, numa electrónica que responde por impulso e que é gradualmente mais assertiva e em constante contorno da nossa audição. Tudo se provoca, mas nada conseguimos vislumbrar, apenas imaginar. Na segunda exploração, encontramos “Texturas de Sombra” de Luís Neto da Costa. Numa soberba utilização da electrónica como ampliação acústica do clarinete baixo, é na multiplicação imagética dos sons da parte do instrumento que se encontra as sombras assustadoramente persecutórias. O ambiente é de tensão, de malignidade, de perversidade. E é aí que está o seu encanto: num doppelganger musical, dois intervenientes musicais distintos tornam-se terrivelmente similares, lutam e fogem entre si para não atingir um estado sobrenatural. Mesmo assim transformam-se numa adulteração instrumental, num cataclismo de sombras ampliadas e distorcidas que por fim, são fundidas num super-entidade aberrante. O percurso é fantasioso e assustador, mas o resultado é real e sedutor.

 

Por fim, temos a última peça deste disco, homónima do disco. “Lux et Umbra II” de André Rodrigues tem a pretensão de ser maior que o mundo, pois nela parece que se move todos os séculos da humanidade, a resplandecência de um tempo que se encontra longinquamente, numa etérea Idade Média evocada num ambiente ritualesco, cerimonial e de esplendor. Esta sensação de assoberbamento é sentida logo de início com uma electrónica retumbante e rica, onde o clarinete baixo se alicerça momentaneamente.  A utilização de melodias gregorianas a partir de metade da peça, dá-nos essa sensação de sonho antigo, de secreto vislumbre de tempos imemoriais e onde Frederic Cardoso reproduz em cânone cada intervenção coral, numa procissão lenta e impassível. A partir daqui o clarinete vai recusando o sonho em favor da clarividência, até o momento final.

 

Para o púlbico melómano e atento ao panorama da nova música, este trabalho é um belo acervo de frescas e novas luminescências encandeantes, principalmente por ser uma amostra extraordinária e substantiva de tendências estilísticas da música actual, música essa, hoje tão dispersa e sem bússola que deambula invariavelmente entre a sedução das técnicas estendidas instrumentais, à partitura obsessivamente hieroglífica, como à liberdade (aparente) da improvisação modeladora de uma obra sempre em construção, sempre em progresso (“work in progress”). Navegar nestas águas com ventos cruzados, é tão perigoso ao gosto musical comum e enviesadamente tradicionalista, que mais que justifica este trabalho discográfico de Frederic Cardoso.

 

Porém, parece mais correcto afirmar que esta selecção estrita de peças - que Frederic Cardoso impulsionou e executou de modo magistral - seja ainda mais atraente para o público menos habituado: são ricas e diversas, as propostas musicais do disco e a família dos Clarinetes irradiam aqui num espectro bem mais amplo que o seu próprio âmbito acústico, fazendo da electrónica não só o acompanhamento ambiental da parte do instrumento, como em alguns casos bem conseguidos, provocar uma verdadeira simbiose discursiva. A omnipresença da electrónica é um sinal dos tempos (de moda?) onde a música actual não parece querer sobreviver sem o uso das ferramentas tecnológicas, embora muitas delas acabem por esbarrar, inevitavelmente, no obsoletismo técnico e operacional. Todavia, a multiplicidade de criação e exploração de novos timbres e texturas – como está bem patente nas obras presentes neste disco – conquistam a atenção e levam o nosso ouvido a perscrutar mundos paralelos de audição e fruição musicais. Deixemo-nos levar!

 

 

Janeiro 2022

www.nunojacinto.com

O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.

Artigos sugeridos