Sandra Bastos
Tem dedicado uma grande parte do seu trabalho à música de câmara e à música contemporânea, tendo trabalhado com inúmeros músicos e grupos. É membro fundador dos grupos de câmara Camerata Senza Misura, Trivm de Palhetas e Clarinetes Ad Libitum e ainda membro do Sond’Ar-te Electric Ensemble e da OrchestrUtopica, para além de tocar em duo com a pianista Elsa Silva.
Enquanto solista ou integrado em grupos de câmara e ensembles, esteve presente nas estreias de mais de uma centena de obras de sessenta compositores e é dedicatário de obras de Cândido Lima, Luís Tinoco, Sérgio Azevedo, Ricardo Ribeiro, Telmo Marques, Virgílio Melo e Miguel Azguime.
É professor de Clarinete e de Música de Câmara na ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo), no Porto.
Da Capo (DC) - O que fez apaixonar-se pelo Clarinete?
Nuno Pinto (NP) - O timbre, a flexibilidade e a versatilidade que o clarinete permite e que eu procuro cultivar no meu trabalho enquanto intérprete. O som deste instrumento (onde incluo também o clarinete baixo e a requinta, que toco ocasionalmente) contém uma expressividade musical com a qual me identifico profundamente. Com o tempo, acabou por fazer parte de uma forma de estar e de pensar a música, tal como a flexibilidade e a potencialidade técnica. Este conjunto de recursos permite uma grande versatilidade em diversos estilos de música, desde a clássica à contemporânea, passando pela “world music”.
DC - Que critérios estiveram na base das escolhas que fez ao nível da sua formação?
NP - Todas as escolhas que fiz começaram por resultar de circunstâncias várias como o local onde nasci, o ambiente em que vivi e as pessoas que conheci ao longo da vida. Numa análise retrospetiva, posso dizer que alguns dos marcos mais importantes foram acontecendo naturalmente entre as convicções musicais e técnicas, a capacidade das pessoas com as quais me cruzei e também o reconhecimento no trabalho que fui desenvolvendo e a paixão que tenho pela música e pelo clarinete.
No que diz respeito aos professores tive o privilégio de ter conhecido três grandes mestres: Saul Silva, António Saiote e Michel Arrignon.
Saul Silva foi um grande oboísta mas, acima de tudo, é um grande músico. Fiz todo o meu percurso no Conservatório Regional de Gaia com ele e fez-me perceber que deveria pensar que a música não dependia do instrumento mas da personalidade que estava por trás de quem a interpreta. A grande lição nesta escolha foi a de perceber o que tinha para me dizer e de que, se queria levar as coisas a sério, teria que trabalhar muito mais do que o talento que pensava ter.
Conheci António Saiote no Prémio Jovens Músicos, na primeira vez que participei. Nessa altura, já ele era uma grande referência e não me senti com à-vontade para falar com ele, até porque eu tinha 15 ou 16 anos e uma personalidade reservada. No entanto, no final das provas, ele pediu para falar comigo e desafiou-me a procurá-lo na ESMAE (na altura, Escola Superior de Música do Porto). Mesmo morando em Vila Real, aceitei o desafio e passei a ter aulas semanais com ele e, mais tarde, ingressei na ESMAE, onde estudei durante 5 anos. António Saiote é um grande pedagogo porque, para além do muito que ensina técnica e musicalmente, é um estratega. A forma como utiliza o lado psicológico e motivacional dos alunos em prol da sua evolução e da criação de um conceito de escola e de grupo é notável!
Quanto a Michel Arrignon, decidi estudar com ele durante um concerto que fez com a Orquestra Sinfónica do Porto, em 1997, dirigido por António Saiote no âmbito de um grande festival que teve 3 edições: ClarmeetOporto. A força e a intensidade do som e da interpretação “obrigaram-me” a falar com este grande músico no final e a combinar forma de poder estudar com ele em Paris. Foi uma grande experiência que durou quatro anos, divididos entre o Porto e Paris, e que me ajudaram a perceber melhor e incorporar uma escola e uma estética com a qual me identifico bastante.
DC - Quais os concertos e os palcos que mais lhe marcaram?
NP - Felizmente, tive o privilégio de pisar grande palcos um pouco por todo o mundo, desde as maiores salas portuguesas, passando pela Europa, Ásia e América. Mais do que os palcos, gostaria de destacar os grupos e as pessoas com quem toquei. A lista é muito grande e todos, à sua medida, foram e são muito importantes na forma com eu entendo a música: um meio de expressão onde, independentemente das capacidades técnicas, cada personalidade é única e tem algo para dizer. Dessa forma e para não colocar aqui todos aqueles com quem já toquei e para não destacar ninguém por entender que todas as personalidades são relevantes e estimulantes não colocaria aqui o nome de ninguém sob pena de deixar de lado outros que, não sendo tão mediáticos, não deixam de ser igualmente importantes.
DC - Tem algum compositor ou obra preferida?
NP - Tenho vários compositores de eleição. Contudo, dado o espectro alargado de estilos que tenho abordado nos últimos anos, é-me muito difícil distinguir algum compositor ou obra sem ser injusto com os(as) restantes. Como faço muita música portuguesa, os primeiros compositores que me vêm à cabeça são Ricardo Ribeiro, Miguel Azguime, Cândido Lima ou João Pedro Oliveira. Pensado no repertório tradicional no clarinete não posso deixar de referir Mozart, Beethoven, Brahms ou Berio.
DC - Quais as renúncias que teve de fazer para se entregar à música? Teve de abdicar da vida pessoal? E as compensações?
NP - Um dia, um amigo disse-me que ser músico não é uma profissão, é uma forma de estar na vida. Concordo com ele e acrescento que é uma ocupação a tempo inteiro. Para um intérprete ou performer não existem fins de semana, feriados e, muitas vezes, não existem férias. O contacto com o instrumento tem de ser constante e intensivo para que se possa manter a forma, com as implicações que isso tem na vida pessoal, familiar, social, etc. A principal compensação é a do desenvolvimento pessoal e do dever cumprido quando se consegue melhorar um pouco a cada dia que passa.
DC - Como organiza a sua vida, os seus tempos livres, a sua preparação técnica, os ensaios, as viagens?
NP - Entre a família, a escola e o clarinete existe um equilíbrio difícil de conseguir! São três ocupações a tempo inteiro que exigem atenção diária. Quando existem viagens e concertos a distribuição do tempo torna-se, naturalmente, desequilibrada em favor do clarinete, o que obriga a que exista antes ou depois uma compensação de forma a repor o equilíbrio. Não é fácil, mas adoro os meus filhos e a minha mulher e gosto muito de ensinar e da relação que consigo estabelecer com os alunos, e, dessa forma consigo também um equilíbrio emocional que me permite a motivação necessária para procurar evoluir diariamente.
DC - Que soluções sugere para os problemas que afectam a música portuguesa?
NP - Nos últimos anos foi feito um investimento enorme no ensino da música em Portugal e que resultou num grande acrescento da quantidade e da qualidade dos músicos portugueses, consubstanciadas em inúmeros prémios internacionais, lugares em grandes orquestras e escolas portuguesas e estrangeiras, bem como na qualidade dos concertos que podemos assistir com músicos portugueses (intérpretes e compositores).
Penso que é tempo de Portugal ter o retorno desse investimento, proporcionando um financiamento às salas de concerto e teatros para que possam programar dando trabalho e visibilidade aos nossos músicos. O que se observa neste momento é desolador porque temos excelentes infraestruturas espalhadas pelo país mas sem qualquer capacidade financeira para ter uma programação que fidelize públicos e permita uma vida musical regular, saudável e necessária.
DC - Como vê a nova geração de músicos Portugueses? Que conselhos lhes pode deixar?
NP - É difícil ser-se músico em Portugal. Penso que todos, jovens e menos jovens, devemos encontrar um caminho, um projeto de vida, com o qual nos identifiquemos e não abdicar da qualidade nem dos princípios que nos norteiam.
DC - Se tivesse a oportunidade de integrar um projecto, o que faria?
NP - Sou um grande entusiasta da música que se faz nos nossos dias. É uma missão dar voz à música atual, torná-la visível e ajudá-la a crescer. Só dessa forma e com a ajuda de compositores, intérpretes e público se pode dar um rumo à música, tornando-a numa forma de arte atual e identificativa de uma classe musical inserida num contexto social e cultural.
A Eletrónica e o potencial que possui ao nível da composição e da expansão do timbre dos instrumentos é algo que tenho vindo a explorar no seio da Miso Music mas também pessoalmente. A integração da linguagem contemporânea em concertos mais tradicionais é uma fórmula que tem dado bons resultados tanto para os intérpretes como, sobretudo, para o público e que deve ser utilizada para aproximar a música contemporânea das pessoas menos habituadas a esta linguagem.
Por último, penso que o ritual do concerto deve ser repensado: de uma forma geral, e tirando honrosas exceções, tem afastado o público da música e dos músicos. Gostaria que este aspeto pudesse ser repensado e talvez seja algo que procurarei fazer num novo projeto ou mesmo nos que já tenho.