Crítica Musical

"Perspetivas" de Bernardo Matias

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Nuno Jacinto

Na ausência de uma política estatal verdadeiramente aglutinadora e impulsionadora da criação musical em Portugal, é no esforço individual de músicos que encontramos a necessária plataforma de divulgação da música do nosso tempo. O trabalho discográfico “Perpetivas – Música Portuguesa para Saxofone e Piano” de Bernardo Matias é neste sentido, mais um contributo de enorme qualidade na divulgação da música que se faz hoje em Portugal, merecendo a atenção de programadores e decisores neste rectângulo à beira-mar plantado, nem que seja pelo limpidez e assertividade sonoras que transbordam neste disco.

 

E é de braço dado com o piano que temos a primeira obra: “Movimento Perpétuo, Interlúdio e Canção” de Daniel Bernardes. Conhecido pelo público melómano do jazz português, Daniel Bernardes é cristalino: como compositor, alicerça-se na sobredosagem harmónica e estonteantes ondulações melódicas desta linguagem para criar este tríptico de andamentos. O primeiro andamento (Movimento Perpétuo) é uma alusão à antiquada obra virtuosa de proibida respiração melódica, embora nesta tentativa o saxofone de Bernardo Matias apresenta-se com uma incessante e bem conseguida improvisação escrita - que nem Charlie Parker! – enquanto que o piano vive obstinadamente de um ostinato acórdico. O segundo andamento (Interlúdio), por sua vez, é dedicado quase exclusivamente ao piano, onde João Lucena Vale exaura requinte. O saxofone apenas observa-o de longe, com pequenos bordões de concordância. O terceiro andamento (Canção), por fim, faz um crescendo progressivo de um simples ostinato harmónico, enquanto que o saxofone se instala numa frase de cinco notas apenas, que é transposta, mudada de oitava... pedia-se mais perante a expectativa de um final quiçá, apoteótico. Apenas duas frases aceleradas nos dão um vislumbre desse prazer interrompido.

 

Em contraposição, Sérgio Azevedo, um estabelecido compositor da nossa praça apresenta-se com duas obras neste trabalho, o que não admira. Sendo um dos compositores mais prolíficos da sua geração, a sua escrita é de imediata familiaridade... porventura, até demasiada. A sua música, principalmente a primeira – “Sonatina” em três andamentos relega-nos imediatamente ao universo sonoro de um Poulenc, não só pela escolha claramente tonal, como pelos desenhos melódicos tão típicos da música leve e impactante da música francesa da primeira metade do século XX. A escrita é idiomática, estando o saxofone aqui bem entregue, num campo de enorme à vontade, onde Bernardo Matias e João Lucena Vale dá-nos largas lições de execução simbiótica, tanto no primeiro andamento e segundo andamentos, os mais lentos. O terceiro andamento é de alguma rigidez rítmica, principalmente no seu motivo inicial, o que não cativa inteiramente.

 

A segunda obra, “Doctor Jekyll and Mr. Hide Blues”, em dois andamentos, propõe-nos uma contraposição de duas personagens musicais deveras interessantes e que são bem conseguidas neste registo discográfico, tendo em conta a perspectiva do best-seller de Robert Louis Stevenson. O blues lamentoso e trôpego do primeiro andamento proporciona ao ouvinte uma estranha sensação de inconstância, não só pelas variações de andamento desta música, como pela relação disfuncional no discurso dos dois instrumentos. Para balancear, o segundo andamento é incessante na luta interior de personalidades, que apesar de opostas, conjugam-se num pulsar constante de “groove” até à capitulação final. “Here then, as I lay down the pen and proceed to seal up my confession, I bring the life of that unhappy Henry Jekyll to an end.”  Assim seja.

 

Ainda na companhia do Piano, temos a obra “Ludic XVIII” do compositor argentino Daniel Schvetz e há muitos anos radicado em Portugal. Pertencente a uma séria de obras compostas sobre uma material temático comum – à semelhança da famosa série de de obras de Luciano Berio – temos esta  décima oitava “brincadeira”, onde o saxofone e o piano procuram falar ao mesmo tempo, mas tudo sai a contratempo. Uma concepção interessante de desconstrução de material temático reconhecido ao ouvido – um “walking bass” ascendente cromatizante, numa tentativa frustrada e insistente de conceber uma espécie de standard de jazz... mas tudo sai ao contrário, com enorme habilidade! Parabéns ao Bernardo Matias e João Lucena Vale pela fantástica execução!

 

Neste trabalho discográfico, ainda temos um conjunto de três pequenas obras para saxofone solo, que são mais aventureiras na sua construção harmónico-melódica (e ainda bem!), têm o intuito primário de explorar o timbre solitário deste instrumento e testar a solidez técnica do dedicatário. Será que foram capazes de o capitular? Nem por sombras: a “Dança da Anunciação” de Pedro Francisco por exemplo, é uma primeira tentativa de exploração de ostinatos melódicos que o saxofone rejubila sem esforço; “Wood Stick Horse” de Nuno Roque é uma peça desconjuntada, apelativa de um brinquedo infantil de repercussões imaginativas e que não abatem mas realçam sobremaneira as capacidades interpretativas de Bernardo Matias; e por fim “Capriccio” de Francisco Chaves é originalmente uma peça para violino e longinquamente associada aos famosos caprichos de Paganini mas que... de frescura só nos traz uma secção lenta, de exploração de multifónicos e outas técnicas estendidas que tão bem o saxofonista nos proporciona.

E se já não estivéssemos suficientemente guarnecidos musicalmente, Bernardo Matias proporciona-nos “la piéce de resistánce”: um arranjo do próprio da célebre obra para guitarra de Isaac Albéniz: “Astúrias”. Indubitavelmente, um dos momentos altos do álbum, onde o músico dá uso e e abuso das técnicas estendidas do seu instrumento. E o resultado é cintilante: o percutir de língua, os multifónicos e o clicar das chaves criam-nos um caleidoscópio da obra original, fazendo-nos sonhar num imaginário novo, de um iberismo vívido mas actual e até futurista.

 

Este conjunto de obras encomendadas e reunidas em disco proporcionam um multifacetado catálogo de repertório para este instrumento, onde a Música composta hoje já não se compadece perante ideologias e vanguardas como noutros tempos e ainda bem! O nosso país actualmente, uma vivência faustosa e múltipla de abordagens linguísticas – umas mais interessantes que outras, é certo – mas muito rica, principalmente num país tão pequeno e por vezes... tão tacanho na relação entre artistas como com os de fora, o público! Mas não é com Bernardo Matias que temos esta pequenez, bem pelo contrário: temos um saxofone lúcido, virtuoso e abrangedor, que tendo como cúmplice o piano de João Lucena Vale, faz-nos sobrevoar sem turbulência, por cima de qualquer subestima nacional crónica! A vós, um bem-haja!

 

 

Nuno Jacinto

Abril 2021

www.nunojacinto.com

O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.

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