Crítica Musical

The Delirium of My Desire de Ana Maria Ribeiro e Isolda Crespi

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Nuno Jacinto

"E aqui começa o teu desejo, que é o delírio do meu desejo: a Música é o desejo dos desejos:” escreveu o poeta italiano Edoardo Sanguinetti, arrebatado pela Arte Musical, pela sua força, rebeldia e fluidez nos sentidos, e que resgata tantas vezes a nossa ânima do purgatório dilacerante da vida quotidiana. Com esta exaltação em mente, a flautista Ana Maria Ribeiro lança-nos no seu primeiro trabalho discográfico, expondo intercaladamente, dois delírios: por um lado atira-se a clássicos ferventes do repertório num destemido desejo de enlevo do público melómano; por outro lado, entrega-se solitariamente e ardentemente a desvarios modernos, numa clara demonstração do seu estatuto como uma das principais flautistas do panorama nacional.

 

O primeiro arroubo, contudo, é comedido e partilhado: a cintilante “Sinfonische Kanzone” op.114, obra do desconhecido compositor alemão Sigfrid Karg-Elert das poucas regularmente interpretadas nos nossos dias, coloca a Flauta Transversal no mesmo plano que a dimensão acompanhadora – e quase cerimonial - do Piano. Esta clarividência é demonstrada eloquentemente por Ana Maria Ribeiro desde a primeira nota: a segurança de timbre e colocação que uma obra deste calibre exige, entre melodias exuberantes a passagens frenéticas, um controlo intenso do instrumento, culminantes numa sóbria cadenza. A interpretação exuberante de Ana Maria Ribeiro e partilhada pela pianista catalã Isolda Crespi Rubio coloca-se, neste prisma, num primeiro inebriamento do que aí ainda vem.

 

Ainda na demonstração desta musicalidade fervorosamente partilhada – embora num segundo arroubo de maior efervescência flautística – está na Terceira Sonata para Flauta e Piano do compositor e flautista francês Phillipe Gaubert: uma elegante obra de início de século XX, ainda com traços naïves e sonhadores do estilo romântico. Ah! E como cantam, numa insânia execução! Ana Maria Ribeiro e Isolda Crespi mimam-nos de modo destacado com um segundo andamento de suspiro, principalmente na secção inicial (e secção final, consequentemente), e um terceiro andamento de puro êxtase arrebatador!

 

Se tal não fosse suficiente, duas obras incontornáveis da herança musical europeia são loucamente lançadas ao ouvinte, numa inconsciência desmesurada. A redução para flauta e piano do “Prelúdio à Sesta de um Fauno” de Claude Debussy é uma escolha óbvia, tendo em conta o célebre tema inicial desta obra, pertencer a uma onírica Flauta de Pã. Se por um lado, deixa-nos meditar nas harmonias cristalinas de Debussy, por outro lado muito empobrece-nos na riqueza tímbrica da obra orquestral. São dignos, os esforços pautados pelas executantes, levando a bom porto esta redução. Hélas, também Franz Liszt reduzia as sinfonias de Beethoven de modo a chegar a mais público e aqui a função didáctica não pode ser desprezada.

 

A “Meditation” da ópera “Thais” de Jules Massenet é, em contraposição, uma escolha mais que acertada: mesmo contra a virtude do violino original em prolongar continuamente o som, a flauta de Ana Maria Ribeiro ultrapassa as limitações do seu instrumento num crescente empolgamento de beleza febril: toda a secção final na oitava brilhante da flauta dá-nos uma sensação de píncaro emocional, juntamente com o embalar franco da pianista Isolda Crespi.

 

A completar este trabalho discográfico, temos três obras actuais para flauta solo, a roçar o ouvinte - e bem! - na Amenomania: o ilusório “Monte Pacato” de António J L Ribeiro – irmão da flautista e dedicatária– leva-nos a viajar num transe celestial, que se vai afogando em rasgos melódicos mais intensos e mundanos. Ana Maria Ribeiro controla bem este vagão com mestria, de quem já o conduziu várias vezes. A loucura afunda-se com “Panic Flirt” do compositor Alexandre Delgado, numa obsessão compulsiva do frenesim, do pânico instalado numa gaiola de pássaros. Uma peça de alto nível técnico, que a flautista demonstra com desconcertante facilidade, desde a vertiginosa articulação e técnicas estendidas, à musicalidade criada nos disjuntos arcos formais da peça. Por fim, a peça homónima do trabalho discográfico – “The Delirium of my Desire” é da autoria de Luís Tinoco, que nos desatina com um pulsar surdo, apenas assumido a meio da peça. A violência de controlo da respiração e dementes passagens furiosas de desvario ornamental, comprova como Ana Maria Ribeiro com pouco esforço leva-nos, pé ante pé, ao limite da nossa sofreguidão, deixando-nos exaustos de tamanha doidice.

 

Esta disco não se trata de uma ilusão, nem de um delírio: há muito tempo que se ansiava por uma amostra eternizada da qualidade simplesmente assombrosa do domínio da técnica flautística de Ana Maria Ribeiro. A cupidez da artista, no entanto, em se submeter a esta temeridade, principalmente pela escolha de um repertório de tamanha proporção e versatilidade, leva-nos a concluir que Edoardo Sanguinetti tinha razão quando evocou “o desejo dos desejos”: a Música entrega-se a poucos, pois só àqueles que a desejam fervorosamente e que a dominam dementemente... são os mesmos que nos fazem vibrar nas nossas cadeiras. Assim, é com Ana Maria Ribeiro e a sua confidente musical, Isolda Crespi. O acesso ao profundo delírio assim, é universal.

 

Nota do autor: todas as palavras em itálico são sinónimas (ou aproximadas) de “delírio” e “desejo”, leitmotifs desta crítica.

 

 

Setembro 2021

www.nunojacinto.com

O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.

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