Victor Pereira

“estarmos constantemente a lidar com novas criações e sonoridades é muito estimulante”

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Sandra Bastos

  • Victor Pereira
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É solista do Remix Enxemble Casa da Música desde a sua fundação, no ano 2000. Integra o duo 2RV com o clarinetista Ricardo Alves e toca também em duo com o pianista Vítor Pinho. É professor de clarinete e música de câmara na Academia de Música de Castelo de Paiva e na Escola Profissional de Música de Espinho e coordenador artístico da Academia Ibero-Americana do Clarinete, um evento que se realiza anualmente em Castelo de Paiva e que tem trazido a Portugal alguns dos representantes mais relevantes do clarinete do espaço ibero-americano.

Em 2018 vai-nos apresentar dois discos novos, um a solo inteiramente dedicado à música portuguesa e outro com o duo 2RV.

 

 

Da Capo (DC) - Como começaste a estudar música?

Victor Pereira (VP) – Eu venho de uma família, do lado da minha mãe, de músicos: o meu avô era músico amador numa banda e um tio tocava clarinete, depois passou para oboé, e foi músico militar. Quando eu era miúdo, comecei a tocar clarinete na banda da terra (Banda de Tarouquela, Cinfães). O meu interesse pelo clarinete vem por influência desse meu tio.

 

DC – Entretanto o teu tio mudou para oboé. Não pensaste também em mudar de instrumento?

VP – Não, mas aconteceu-me uma história engraçada. O meu primeiro instrumento foi de facto um feliscorne. Eu queria clarinete, mas não havia instrumento disponível. Depois de experimentar o feliscorne, tomei uma atitude: “Este não quero. Ou me arranjas um clarinete ou não quero nenhum instrumento”. Eu já gostava do som do clarinete.

 

DC – Depois foste estudar para a Academia?

VP – Comecei obviamente na banda, entretanto começaram a surgir as escolas de música, não era nada do que era hoje, mas na altura haver uma escola onde só se estudava música, para mim, era um sonho! Eu tinha um colega que estudava nessa escola e, um dia, ao regressar das aulas do liceu fui lá com esse colega perguntar o que era preciso para poder estudar lá, sem dizer nada aos meus pais. Devia ter uns 11 anos. Cheguei a casa e contei à minha mãe. Acho que ela me viu tão determinado, que aceitou inscrever-me.

O meu primeiro professor de clarinete foi o professor Agostinho Vieira, que também é o diretor da Academia de Música Castelo de Paiva desde a sua fundação.

 

DC – O que é que destacas na tua formação que se tornou fundamental para o que fazes hoje?

VP – O gosto pela música vem da família, era quase natural na minha terra natal passar pela banda. Quase toda a gente das pequenas terras em Portugal passou pela banda. Depois comecei a estudar. A figura do professor Agostinho foi muito importante porque foi alguém que, reconhecendo-me algum potencial, sempre me apoiou, orientou para conhecer outras pessoas, fazer masterclasses, etc, promoveu contacto com os grandes nomes como o professor Saiote, entre outros. Ele teve esse cuidado e noção de me abrir portas.

Ainda fiquei ligado à banda do ponto de vista humano e social durante alguns anos, mas depois acabei por abandonar por não dava para conciliar. Guardo muito boas memórias, acho que é de facto aí que a música faz todo o sentido.

 

DC – As bandas são o nosso El Sistema?

VP – Sim, sem dúvida. Se calhar hoje menos porque já existem as escolas de música. Mas antes era obrigatório passar pela banda.

Mas retomando a questão anterior, houve pessoas importantes na minha formação. Os professores são quem marca mais o nosso percurso.

 

 

“estarmos constantemente a lidar com novas criações e sonoridades é muito estimulante”

 

 

DC – Como foste para ao Remix Ensemble? Já tinhas a ideia da música contemporânea?

VP – O gosto por fazer música contemporânea sempre o tive. Aliás, gosto de fazer música seja ela qual for. Não gosto muito de fazer a distinção entre intérpretes. Entrar no Remix acabou por ser uma feliz coincidência. Eu estava a acabar a escola superior. Como é muito comum na classe da ESMAE, quando aparece um concurso as pessoas tendem a comparecer. Eu fui com outros colegas, era mais um concurso.... Tinha uma noção do que era a música contemporânea no repertório do clarinete, mas depois ter ganho o concurso e ficado no Remix fez com que a minha vida tivesse um foco numa área, foi uma aprendizagem.

 

DC – Como têm sido estes 17 anos de Remix?

VP – O Remix é um projeto marcante e inovador em Portugal - é a primeira vez que surge uma estrutura deste género. A mim agrada-me a ideia de pertencer a um projeto que é uma referência no país, embora existam outros grupos de música contemporânea.

Tem sido uma experiência fantástica! O facto de estarmos constantemente a lidar com novas criações e sonoridades é muito estimulante, adquirir uma vivência de um mundo que é atual faz todo o sentido para mim, é algo que gosto muito de fazer.

 

 

“Quando se faz uma estreia, há todo um mundo de coisas que alguém tem de pensar pela primeira vez”

 

 

DC – Não te assusta olhar para uma partitura e pensar “como é eu vou fazer isto”?

VP – A experiência obviamente ajuda. Por um lado, é difícil, mas por outro lado é o bom da coisa. O facto de haver um desafio é estimulante. Quando toco uma obra de outras épocas, a probabilidade de já a ter ouvido em gravações ou em concerto é muito grande. Naturalmente quando pego numa obra dessas, há já uma referência qualquer.

Quando se faz uma estreia, há todo um mundo de coisas que alguém tem de pensar pela primeira vez. A linguagem e o compositor também têm as suas próprias influências e as coisas estão relacionadas umas com as outras.

 

DC – A música contemporânea é uma linguagem à parte?

VP – Houve uma vez um compositor e maestro que trabalhou connosco que nos disse uma coisa simples e básica “nenhum compositor que escreva no séc. XX ou XXI desconhece a música que foi feita nos séculos anteriores”. Isto não é um compartimento estanque, a música está toda relacionada. Não é possível definir uma barreira. Gosto de pensar assim, quando estou a fazer música do séc. XIX é tão natural como fazer música do séc. XX ou XXI. Não distingo uma coisa da outra.

Há linguagens diferentes, mas se tocar Brahms ou Mozart também são linguagens diferentes. Há aspetos que são do instrumento, da criação musical e da estética que nós temos de encarar de maneira diferente.

 

 

“o problema do nosso sistema de ensino é que é baseado, em pelo menos 90 por cento, no sistema tonal”

 

 

DC – Ao tocares mais música contemporânea, sentes que tens como missão sensibilizar os teus alunos para este tipo de música?

VP – Sim, nós enquanto professores estamos limitados nas nossas funções aos conhecimentos que temos. Se eu tenho mais conhecimentos na área da música contemporânea, tenho a possibilidade de abordar mais com os alunos, mas no clarinete sempre existiu a tradição, influenciada pelo professor Saiote, de introduzir no repertório música contemporânea.

 

DC – Ainda existe o mito de que a música contemporânea é demasiado difícil para os alunos?

VP – Existe música difícil e música mais acessível. Tecnicamente, as obras mais atuais são um pouco mais exigentes, o que faz com a sua abordagem sejam mais tardia. Mas também existem obras que não são assim tão complicadas.

 

DC – E mais fáceis de ouvir?

VP – Ao nível da audição, acho que é mais preconceito. Cada vez mais, tenho a consciência de que é um preconceito mais forte no meio dos músicos. Não tenho nenhum estudo para estar a confirmar isto, mas a impressão que tenho é que se eu pedir a uma pessoa que não tenha qualquer referência clássica, romântica ou moderna, para ir assistir a um concerto, ela vai ou não gostar, mas não por não ser Mozart ou Beethoven. É uma questão de habituação, conhecimento e de experimentação.

Quanto mais formação musical as pessoas tiverem, tendem a reagir de maneira diferente aos vários tipos de música. Depois há também o problema do nosso sistema de ensino que é baseado em pelo menos 90 por cento, no sistema tonal. Se as pessoas passam a vida toda a estudar em função de uma linguagem/estética, é natural que depois achem as outras mais estranhas.

 

 

“É natural que por eu ser solista do Remix as pessoas me vejam mais como intérprete de música contemporânea, mas não é natural pensarem que só faço este tipo de música”

 

 

DC – Achas que por seres solista no Remix corres o risco de ser chamado menos vezes para interpretar outro tipo de repertório?

VP – Existe um preço a pagar por fazer mais música contemporânea. É natural que por eu ser solista do Remix as pessoas me vejam mais como intérprete de música contemporânea, mas não é natural pensarem que só faço este tipo de música. Um dos professores com quem trabalhei foi o Alain Damien, tive aulas de música contemporânea, mas também trabalhei com ele as Sonatas de Brahms, que aliás foi das melhores aulas que tive sobre as Sonatas de Brahms. Ele também sofreu um bocado esse preconceito de que alguém que está ligado à música contemporânea só faz música contemporânea.

 

DC – Consegues tocar toda a música que queres?

VP – Infelizmente o nosso país não é pródigo em oportunidades para tocar. Todos os meus colegas clarinetistas queixar-se-ão da mesma coisa. Por exemplo, nos últimos três anos toquei duas vezes o quinteto de Brahms e o quinteto de Mozart. A maior parte dos clarinetistas portugueses fez o mesmo ou ainda menos e não é por estarem ou não num grupo de música contemporânea.

 

 

“Este desenvolvimento do repertório do instrumento nas suas várias formações é algo que a mim me dá muito gosto de fazer”

 

 

DC – Além do Remix, em que projetos estás mais envolvido?

VP – Toco em duo de piano com o Vítor Pinho, fazemos música, com repertório para clarinete e piano de todas as épocas. Temos de ter a consciência de que a maior parte do repertório para clarinete é do séc. XX! Vamos ter agora alguns recitais, onde decidimos fazer um programa misto.

Tenho também outro duo - 2RV, mais ligado à área de música contemporânea, com o clarinetista Ricardo Alves. Ambos tocamos todos os instrumentos da família do clarinete e neste duo usamos todos os clarinetes necessários. Existe algum repertório já escrito para este tipo de formação.

Vamos estrear algumas obras de compositores portugueses, como Nuno Peixoto de Pinho, Jorge Prendas e Igor C. Silva. A ideia é também abordar o clarinete com várias estéticas, gosto diferentes - para mim a riqueza da música está na diversidade.

Este desenvolvimento do repertório do instrumento nas suas várias formações é algo que a mim me dá muito gosto de fazer.

 

DC – E gravações?

VP – Ando justamente a trabalhar agora nesse campo. A questão das gravações é muito pertinente. Hoje qualquer pessoa que se apresente em público está sujeita no minuto seguinte a aparecer no youtube, por mais que a lei não o permita, é quase impossível controlar.

Muitas pessoas hoje põem em causa as gravações, se vale a pena ou não fazer discos. Eu também penso, por isso estou a preparar um disco porque acho que vale a pena. O cd já não é propriamente um meio de divulgação como era antigamente, mas é um documento que fica. Justifica-se fazer um disco porque podemos fazer com algum cuidado, bem pensado e amadurecido. Claro que já ninguém faz cds a pensar em vendê-los ou ganhar dinheiro com isso.

No disco que estou a preparar, pretendo envolver os compositores, para ficar também registada a sua influência e visão. As obras vão ser todas a solo, com algumas obras que me foram dedicadas, outras não, e só música portuguesa! Vou gravar, sem dúvida, até ao verão.

O duo RV também tem em mente um projeto semelhante. Depois das estreias, está claro que o próximo passo é passar à gravação.

 

 

“a música é um todo que se pode explorar”

 

 

DC – És também diretor artístico da Academia Ibero-Americana de Clarinete.

VP – Foi um desafio que o professor António Saiote me lançou e também à Academia de Música de Castelo de Paiva. É um projeto que temos abraçado com carinho e com esforço. É algo que hoje faz todo sentido, que é promover a comunicação a nível global. É um processo de partilha entre dois continentes, que têm maneiras distintas de ver o clarinete.

Têm acontecido coisas muito enriquecedoras ao longo das várias edições. Por exemplo, na América do Sul, o clarinete tem muita tradição e riquíssima, mas não tanto na música erudita, como a europeia.

 

DC – Achas que temos de reformular o conceito de música erudita?

VP – Acho que sim. Antigamente, fazíamos a distinção entre música erudita , jazz, pop, rock, etc. Hoje já há quem considere o jazz como música erudita, já existem cursos de jazz nos conservatórios, ou seja, o que é que passa a ser erudito?

Eu acho que esta transversalidade faz todo o sentido. Claro que há pessoas mais especializadas numa área ou noutra. Para mim, música é música. Podem haver várias áreas onde nos podemos desenvolver e expressar, mas a música é um todo que se pode explorar, os próprios compositores já o fazem e os intérpretes também.

 

 

“Nós, enquanto país, fizemos um trabalho extraordinário na formação musical”

 

 

DC – O que é que mudou no panorama da música nas últimas décadas? E o que é nos falta ainda?

VP – Nós, enquanto país, fizemos um trabalho extraordinário na formação musical. Hoje temos músicos de excelente nível que aparecem todos os dias a ganhar concursos. Tivemos uma capacidade incrível de evolução na parte da formação. Já não há dúvidas de que temos qualidade em todos os instrumentos para concorrer ao mais alto nível na Europa.

Este processo de evolução que aconteceu em 20/30 anos foi muito rápido. O país não tem e nem conseguiu ainda desenvolver-se ao nível da oferta, ou seja, não é normal a realização frequente de concertos. A oferta de concertos existe apenas nos grandes centro e pouco mais. Há cidades pequenas e até capitais de distrito que não têm qualquer tipo programação, só fazem coisas pontualmente.

Falta-nos evoluir na programação, mas para isso, claro, temos de ter público. Mas para haver público tem de haver oferta, uma coisa tem de existir para também existir a outra. É esse o trabalho que ainda nos falta fazer, porque já temos músicos de excelente nível.

Havia tanta necessidade de desenvolver o ensino que era quase natural um músico tornar-se professor. Mas hoje, isso já não é possível, já há gente a formar-se que não tem lugar nas escolas. Como existem poucas orquestras, pouca oferta de concertos, estamos a chegar a uma fase de dificuldade...

 

DC – Por isso é natural que os músicos saiam do país para terem mais oportunidades de emprego?

VP – Nós temos de encarar isto de maneira natural até porque estando na União Europeia a migração faz todo o sentido. Assim como foi normal durante muito tempo que as pessoas fossem ficando porque iam encontrando lugares e trabalho, é também normal que as pessoas saiam porque a quantidade é cada vez maior.

 

 

“todos nós, músicos, temos de nos envolver nesse processo: criar oportunidades para as pessoas tocarem, mas com dignidade”

 

 

DC- O que podes fazer enquanto músico para mudar alguma coisa?

VP – Enquanto músicos, temos de ter um papel ativo. Pela dimensão do nosso país, não existe propriamente uma rede de programação. Existe apenas das grandes cidades e noutros casos a nível local. As próprias escolas de música atuam também como programadores.

O que falta é criar ciclos de concertos, seja de música de câmara ou orquestra. Têm surgido projetos de orquestras pontualmente, agora em maior quantidade, o que é muito bom e é também um sintoma de que existem músicos!

Agora é importante que essas estruturas vinguem, tenham capacidade de se instalar e obviamente deem condições dignas a quem lá trabalha. É muito romântico fazerem concertos de orquestra por carolice, mas todos nós temos de comer, contas para pagar, família.... É preciso que esses projetos cresçam, mas que tenham condições de trabalho dignas. E todos nós, músicos, temos de nos envolver nesse processo: criar oportunidades para as pessoas tocarem, mas com dignidade.

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