“A Dialogue with the Masters” – CD de Luís Magalhães

"um espelho honesto do percurso de quem toca, um diário íntimo feito de experiência"

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Nuno Jacinto

A interpretação solitária de um instrumento como o piano é um desafio de incomensurável risco e um pianista acaba, por fim, abraçar muitos projectos em parceria que, não sendo menos desafiantes e técnica e artisticamente, menorizam a solidão inegável da interpretação deste instrumento. Luís Magalhães é um assinalável pianista, cuja carreira passou-se em larga medida pela África do Sul, e cujo percurso artístico pautou-se por diversas aventuras discográficas em parceria, de onde se destaca claramente o investimento na formação de piano a 4 mãos (ou dois pianos) TwoPianists com Nina Schumann. É de realçar, sem margens para dúvidas, a excelente gravação das Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach, numa fantástica transcrição a dois pianos do organista Joseph Rheinberger e adições do compatriota Max Reger. Luís Magalhães também não é nenhum músico desconhecedor dos meandros da produção discográfica: teve ao longo de vários anos, uma discográfica própria, que teve vários sucessos, como foi o caso do galardoado “Vivaldi & Piazzolla Seasons” do violinista Daniel Rowland. Então, como podemos interpretar este lançamento do pianista a solo, numa discográfica que não sua? De regresso ao seu país natal, o albúm “A Dialogue with the Masters” (2025, Artway Records) propõe-nos claramente uma viagem – uma caminhada de escuta interior - e ao mesmo tempo, de regresso a casa. Este não é apenas um registo de grandes obras do repertório clássico e romântico — é uma declaração artística profundamente pessoal. Dividido em dois CDs, Luís Magalhães reúne obras cimeiras de Schubert, Mozart, Beethoven e Brahms, num alinhamento que não pretende ser cronológico nem exaustivo, mas sim revelador de uma relação íntima entre intérprete e obra. O título do álbum, longe de ser uma metáfora decorativa, é profundo: Luís Magalhães entra num verdadeiro diálogo com os mestres e com o tempo, em que a fidelidade à partitura se cruza com a execução emocional amadurecida ao longo de anos.

 

O primeiro disco é inteiramente dedicado a obras tardias de Franz Schubert. Desde as primeiras notas das Klavierstücke, D.946, torna-se evidente a abordagem cuidadosa, quase meditativa, do pianista famalicense. Esta aproximação ao repertório final da vida do compositor austríaco não é nova, mas não deixa de ser assinalável: o primeiro andamento (Allegro assai) é tocado com energia controlada, deixando espaço para os contrastes entre luz e sombra, com especial destaque para as secções lentas interiores. O segundo andamento (Allegretto) mergulha inexoravelmente numa atmosfera mais introspectiva, mas Luís Magalhães reduz a velocidade consideravelmente de modo a criar maiores subtilezas melódicas. Não há pressa em chegar a clímaxes nem desejo de impressionar com gesto ou brilho técnico. A famosa segunda secção “tempestuosa”, porém, assola-se com mais velocidade, é certo, mas com menos amplitude dinâmica que se pedia, numa secção de turbulência emocional contida. O terceiro andamento (Allegro) destaca-se pela escolha deliberada de inexistência de rubatos (facto que pulula em variadíssimas interpretações de grandes pianistas e por consequência, na imagética da peça), especialmente na secção homofónica do andamento: uma escolha, a princípio desconcertante, mas gradualmente vitoriosa e sem dúvida, uma marca de qualidade desta gravação, principalmente no brilhantismo na transição para a secção final. Um andamento a ouvir e re-ouvir.

 

Na monumental e derradeira Sonata em Si bemol maior, D.960, Franz Schubert deposita o seu testemunho artístico final. Composta nos últimos meses de vida conjuntamente com outras duas sonatas (a famosa trilogia D.958-960), a sonata é resultado dos últimos meses de vida, alternada entre momentos de frenética inspiração e febril composição com os ataques finais da doença que o assolava, entoando os seus últimos rebates. Sendo uma obra de quatro andamentos e de duração considerável, esta sonata exige do intérprete, hélas, um domínio considerável do tempo e da estrutura. A interpretação de Luís Magalhães oferece-nos, sem dúvida, um equilíbrio entre solidez arquitectónica da obra com uma clara liberdade poética. Destaca-se assim, dois andamentos: o tocante primeiro andamento (Molto moderato) é construído com serenidade e profundidade emocional: a opulência harmónica de Schubert é nesta gravação genialmente contrastada com a simplicidade melódica, com as pausas sussurrantes e um trilo grave gradualmente dilacerante e premonitório. Luís Magalhães demonstra aqui a sua inegável habilidade técnica, tornando os silêncios tão expressivos quanto as notas, e uma fluidez do discurso madura. “Estas obras foram minhas companheiras durante anos. Às vezes sentindo-se como velhos amigos, outras vezes revelando-se de formas que eu nunca esperava”, comenta Luís Magalhães no seu disco. Essa intimidade sente-se de forma mais proeminente no segundo andamento (Andante sostenuto), talvez o ponto mais comovente do disco, onde a dor e a aceitação parecem coexistir numa mesma linha melódica. O controlo férreo de velocidade, da articulação, dos silêncios e das mudanças de dinâmicas que este andamento encerra, demonstra a madura musicalidade do pianista, ditando a cada compasso, meticulosamente, a dor conformada de Schubert. Até na secção intermédia de efémera e vã felicidade, Luís Magalhães não cai na tentação de arroubos desnecessários: controla, torneia e materializa uma das faixas mais bem conseguidas e memoráveis deste trabalho discográfico.

 

O segundo disco reúne de modo gradual, obras de Mozart, Beethoven, e Brahms, numa aparente tentativa cronológica de ascensão virtuosa. Enganador será assumir que as duas fantasias de Mozart — em Ré menor, K.397, e em Dó menor, K.475 — sejam mais fáceis do ponto de vista musical e técnico. Nada disso: cada uma das fantasias são premonitórias de um Mozart emancipado e entregue ao mundo depois do êxodo da corte de Salzburgo: a primeira fantasia é uma suposta consequência do seu talento posto à prova em duelos improvisados contra Clementi, ao mesmo tempo que descobre a obra de Bach; a segunda fantasia é dedicada à sua mais dotada aluna, revelando no compositor o gosto pela experimentação formal, pelo devaneio harmónico menos esperado, resultando numa obra visionária do século seguinte. Luís Magalhães aborda estas obras com clareza de textura e articulação, mas sem satisfazer inteiramente: há momentos bem conseguidos, mas outros em desequilíbrio, principalmente nas secções em estilo improvisado da segunda fantasia. Todavia, o pianista mantém um difícil equilíbrio entre estrutura e expressão, evitando os excessos interpretativos que tantas vezes encontramos na interpretação destas pequenas peças de aparente simplicidade da escrita mozartiana.

 

Segue-se o conjunto de seis Bagatelas, Op.126, de Beethoven na fase final da sua vida — obras breves, mas de uma densidade emocional impressionante e o último contributo para o piano pelo grande mestre de Bona. Cada bagatela é um microcosmo poderoso, um contributo concentrado de toda a genialidade de um mestre aclamado no seu tempo mas já irremediavelmente surdo e doente. Luís Magalhães lê estas peças como aforismos musicais, revelando o contraste entre introspecção e energia de cada pérola musical. A primeira e terceira bagatelas mergulham na melancolia, com frases magnificamente esculpidas pelo pianista famalicense. A quarta é um momento de pura tensão rítmica e de puro gozo pela impetuosidade dinâmica infligida por Luís Magalhães. A sexta bagatela fecha o ciclo com um equilíbrio admirável entre impulso e serenidade: “Houve dias em que Beethoven exigia mais do que eu pensava poder dar”, admite o pianista — uma frase que parece ecoar na intensidade com que estas miniaturas são abordadas. Não há superficialidade aqui: Luís Magalhães tem estas peças no seu âmago, dando peso e vulnerabilidade a cada uma delas.

 

O ciclo termina com os 4 Klavierstücke, Op.119, de Johannes Brahms — talvez as peças mais densas e introspectivas de todo o trabalho discográfico. À semelhança de Beethoven, é a última contribuição em vida do compositor para o seu instrumento de eleição, marcadas por uma melancolia latente. O primeiro Intermezzo (Adagio) com os seus famosos arpejos descendentes é tratado por Luís Magalhães com enorme subtileza, como se cada nota nascesse de um gesto interior. No segundo, o pianista equilibra agitação e lirismo, explorando com maestria a tensão entre fluidez e instabilidade. O andamento final, a Rapsódia, hélas, Luís Magalhães imprime a firmeza e opulência exigidas, mas sem nunca ceder ao dramatismo excessivo. “Brahms lembrava-me que a beleza muitas vezes reside na contradição”, escreve Magalhães: uma visão que orienta indubitavelmente a sua leitura destas obras tardias, onde a luta entre tensão e resignação se torna quase existencial.

 

O que unifica este trabalho discográfico — para além da evidente maturidade técnica e estilística de Luís Magalhães — é a escuta sensível e pessoal que o artista dirige às obras. O disco é, nesse sentido, mais do que uma colectânea de obras: é um espelho honesto do percurso de quem toca, um diário íntimo feito de experiência. É esta honestidade que distingue este disco num panorama tantas vezes marcado pela busca de efeito imediato e curtas modas interpretativas. Aqui, o tempo é respeitado: o tempo da obra, o tempo do intérprete, o tempo do ouvinte. “Espero que, ao ouvir, encontre as suas próprias reflexões nestas notas”, escreve, com a humildade de quem sabe que a arte não se impõe — propõe-se.


A Dialogue with the Masters é, assim, uma afirmação artística de Luís Magalhães, que munido de todo o seu portento técnico e musical, transforma a escuta deste disco numa partilha, numa história de largos anos que é, afinal, também nossa.

 

 

www.nunojacinto.com


O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.

 

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