Crítica Musical

Goyescas – Granados de António Rosado

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Nuno Jacinto

  • Goyescas – Granados
  • António Rosado
  • Nuno Jacinto

No panorama musical erudito português, poucas figuras se comparam à carreira meticulosamente cuidada e rica como o do pianista António Rosado. A sua já respeitada discografia cristaliza pujantemente a contínua e versátil escolha de repertório, que vai desde os clássicos do corpus pianístico – Liszt, Debussy, Brahms ou Beethoven - a incursões audazes de assimilação estilística, como é o caso da singular música do romeno Georges Enescu. A ele também devemos um sólido trabalho de recuperação e promoção da música portuguesa de inegável qualidade e que hoje ainda persiste descurada, esquecida e desconsiderada. Falamos ainda dos nomes grandes do século XX como Luís de Freitas Branco, Armando José Fernandes ou Fernando Lopes-Graça, cujo repertório pianístico só aparentemente por conveniência do apoio estatal, pulula efemeramente em recitais do instrumento em todo o país. Já sem mencionar o repertório camerístico ou sinfónico, cuja aparição destes compositores são mais a excepção do que a regra.

 

Um dos mais brilhantes pianistas do panorama musical português, António Rosado sempre promete ao seu público uma total imersão na cultura e ambiente artístico dos compositores que elege como alvo de estudo afincado, sendo o seu mais recente trabalho discográfico – “Granados – Goyescas” (editora NEXT – Artway) - a última proposta neste âmbito. O compositor catalão Enrique Granados, a par do seu conterrâneo Isaac Albéniz é, sem dúvida, o último expoente da música romântica tardia e nacionalista espanhola, tanto imbuído da grande tradição pianística novecentista de Chopin, Schumann e Grieg (alguns até atrevem-se a denominar Granados como o “Grieg espanhol”) como refrescado pelas pinceladas audazes de Debussy. Pianista de envergadura considerável, Granados foi uma figura maior do seu tempo ao capturar com genialidade o majismo: imagética altamente romantizada de uma velha Madrid, serpenteada por figuras boémias, misteriosas, perigosas e de faca oculta na cintura. O pintor aragonês Francisco de Goya torna-se assim na inspiração pictórica, onde os seus quadros reflectem-se (directa ou indirectamente) como proposta programática no conjunto de seis andamentos das “Goyescas”, publicadas em dois volumes.

 

A escolha nada inocente de António Rosado deste referencial do repertório pianístico romântico espanhol e a sua inevitável imersão estilística resulta numa tentação irresistível de audição e também de apreciação crítica, principalmente comparando com as diversas gravações existentes no mercado por pianistas de renome a nível nacional e internacional. Até da interpretação do próprio Granados temos acesso privilegiado, através das gravações em rolo de pianola (na Duo-Art, na Triphonola e na Pleyela) que as principais marcas de pianos promoviam entusiasticamente no início do século XX junto das principais figuras da altura, no afã experimentalismo dos primeiros passos da gravação fonográfica. Um peso que António Rosado parece assumir com total profissionalismo e galhardia (granadesca!).

 

A começar o registo discográfico, António Rosado atira-nos logo para fora do lago e impõe-nos uma peça, que embora umbilicalmente ligada às “Goyescas”, não lhe pertence verdadeiramente. Assumida à posteriori pelo editor como parte integrante da suite, “El Pelele” ou “Escena Goyesca” é inquestionavelmente uma peça conivente da mesma atmosfera de idilismo espanhol aliado ao virtuosismo pianístico que encontramos na suite. Plena de energia e inocência, António Rosado inaugura-nos na dança ternária de um antigo jogo infantil carnavalesco onde um boneco de trapos é atirado com um lençol ao ar por jovens, podendo ser sub-repticiamente roubado pelos pares masculinos. A diversão do tema inicial é capturada por António Rosado com velocidade, nunca cedendo no andamento, apesar da escrita polifónica difícil. Em consequência, o acompanhamento em staccato sofre algum desbaste, embora a excelente condução melódica absorve-nos e conduz-nos às eufóricas passagens oitavadas de pleno fôlego. A enfeitiçante mão direita de Rosado comprova o seu encantamento melódico no Meno Mosso, onde finalmente cedendo no tempo, deixa-nos respirar. Os recortes ornamentais transportam-nos sucessivamente à secção final, cujo crescendo dinâmico nos empolga até ao acorde final.

 

O primeiro andamento da suite – “Los Requiebros” - demonstra a capacidade engenhosa de Granados na apropriação de melodias populares numa nova roupagem e numa frutuosa atmosfera dançante de sumptuosidade romântica. A série de variações gradualmente virtuosas e texturalmente recortadas que o compositor se auto-propõe com a melodia da denominada Tonadilla (na realidade, trata-se de uma Jota oitocentista como denunciado pelo padrão rítmico omnipresente) é dominada magistralmente por António Rosado, apesar dos constantes apelos a técnicas guitarrísticas estilizadas de punteo e rasgueo. Especialmente a última variação onde toda extensão do piano é usada, Rosado imprime velocidade nos recorrentes arpejos ascendentes, sem nunca esquecer a devida bonomia que o tema deve sempre aparentar. O resultado é brilhante. Em contraste, “El Fandango del Candil” (Fandango à luz das Velas) pretende ser uma dança sussurrante com súbitos assombros dinâmicos e de paixão eloquente. As acentuações rítmicas num ambiente gradualmente desassombrado e em contraste com as obsessivas tercinas guitarrísticas fazem deste andamento dos menos conseguidos do disco: a pouca amplitude dinâmica da gravação não releva as diferentes camadas texturais que Rosado apresenta em outros andamentos da suite.

 

Do sucesso da suite, Granados derivou tematicamente da suite para uma ópera, género que o compositor também desenvolveu com sucesso na sua curta vida. António Rosado propõe-nos o famoso “Intermezzo” dessa ópera como separador musical do trabalho discográfico, que embora originalmente servisse de pano de fundo musical menos importante entre cenas, ainda recorta musicalmente o tema inicial do primeiro andamento da suite. Com clara inspiração no flamenco, a dança inicial é simples, lenta mas muito expressiva, em especial nas dinâmicas. Neste campo, Rosado assume um invulgar andamento mais vivo mas não nos desilude com respeitosas mudanças e com interior toque do instrumento.  Eis que o tema intermédio (das trompas e cordas na versão original orquestral) irrompe com o seu acompanhamento sincopado. Mais uma vez, o pianista escolhe um andamento acelerado de menor dramatismo, mas mais contrapontístico e denso, apenas contraposto com a citação diluída da primeira das “Goyescas”. O final é bastante presente apesar da indicação pianíssimo, muito devido à captação sonora do interior do piano. Característica geral da gravação que (quase) capta desnecessariamente os martelos do instrumento.

 

A paixão mesmo assim, está presente em todo o disco de modo inefável: a relação amorosa entre uma maja e dois pretendentes (como seria retratado consequentemente na ópera homónima) é a linha condutora da construção dos temas do “Coloquio a la Reja” (Conversa amorosa à janela). É uma canção amorosa em dueto, onde através uma janela enjaulada, o amor pretende ser trocado na penumbra dos candeeiros nocturnos. As personagens imaginárias estão enamoradas e este ambiente luminoso e de ascensão da alma está mais que patente na interpretação de António Rosado: os tortuosos cromatismos ofegantes, o excelente controlo dos rallentandos em função da incerteza harmónica causada pelos recortes ornamentais das tercinas e quintinas eleva este andamento ao pódio dos momentos altos do disco, apenas destronado pela soberba interpretação do andamento mais famoso das “Goyescas”. “Quejas o la Maja y El Ruiseñor” é o andamento mais apaixonante do disco, num arquétipo perfeito entre o equilíbrio formal tripartido e o arrebatamento lírico dos seus temas numa construção polifónica a quatro vozes. Oh! Rosado liberta-se e lança-se na languidez e na fantasia da melodia imortal da secção intermédia (uma lindíssima melodia popular valenciana) sem nunca deixar o acompanhamento roubar o protagonismo. Aqui sim, as camadas texturais estão inteiramente definidas e António Rosado canta, o amor floresce e nos beija, e cada oitava destacada da melodia faz-nos borboletas no estômago! A cadenza final quebra este ambiente extasiante, numa leveza ornitofónica de igual mestria e candura. Bravo!

 

Se o caro ouvinte ainda estiver inebriado deste zenith do trabalho discográfico de António Rosado, destile o seu rubor com a audição dos seguintes dois portentosos andamentos do segundo livro, verdadeiros tomos condensadores de toda a música ouvida anteriormente. “El Amor y la Muerte” e a “Serenata del espectro” também se alimentam (cada um à sua maneira) dos mesmos temas do andamento anterior. O primeiro é uma colossal balada de dolorosíssimas recordações dos temas anteriores, onde Rosado transmite-nos uma melancolia compassada e de acutilante alinhamento entre um acompanhamento ora arpejado ora sincopado e uma melodia em registo agudo. A morte – esse inevitável presságio de fim – é soberbamente alcançado pelo toque interior magistralmente domado do piano, numa lacrimejante lentidão dos acordes finais. O segundo é um epílogo paradoxalmente austero, numa dança desconchavada da alma do majo pretendente, morto em duelo fatal. Numa série de episódios em variação, António Rosado conduz-nos a uma recapitulação dos vários temas das Goyescas (principalmente do “Coloquio”) através da melodia principal no registo médio do instrumento, assumindo uma guitarra imaginária (daí todo o andamento deambular insistentemente nas notas e registo das cordas da guitarra clássica?) de modo rigoroso e límpido.

 

Apesar dos compromissos na captação do instrumento e na compressão pouco usual no resgito de um instrumento como o piano, o registo interpretativo de António Rosado neste disco é mais um comprovativo do brilhantismo interpretativo e solidez técnica do pianista português, digno de pertencer à discografia de qualquer melómano ou interessado na música para piano gravada nos últimos anos. Rosado dá-nos uma destacada e memorável interpretação das “Goyescas”, acutilante e respeitosa da partitura, demonstrando domínio completo da escrita virtuosística de Granados sem nunca submeter a música a grandes devaneios em rubato...como encontramos em outras gravações soporíferas. Bravo!

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