Crítica Musical

“Diálogos – Piano a 4 Mãos” – CD de João Costa Ferreira e Bruno Belthoise

Nuno Jacinto

  • Nuno Jacinto

A cultura francesa e principalmente a acção estatal do país em apoio às Artes foi durante vários séculos alvo de admiração, cobiça e de plágio (mais ou menos bem conseguido) por muitos países europeus. É do conhecimento certo do leitor que a arte e cultura francesa foram magnânimas durante o século XIX e que no século XX esta ganhou novo exacerbamento, com Paris como capital mundial da cultura europeia: todos os verdadeiros os aspirantes a artistas puderam forjar correntes artísticas de impacto inegável nas ruas, galerias e anfiteatros daquela metrópole e onde muitos outros foram beber da inspiração dos grandes escritores e pensadores franceses, do cenário musical rebelde e estimulante, dos escritores do teatro e depois do cineastas franceses e por consequência, respirar os ares do espírito republicano sonhador e livre. Até ser completamente suplantada pela cultura americana e língua inglesa, a língua e cultura francesas foram para muitas gerações, o verdadeiro símbolo da arte mais arreigada, do mais alto cume insofismável do pensamento sofisticado, de uma elite intelectual aparentemente heterogénea mas cimentada pelo francês como língua franca de uma sociedade internacional a que toda a gente desejava pertencer. Portugal e os seus artistas não foram imunes a esta atracção e a relação com França foi sempre uma relação de desejo de pertença a uma linhagem maior que aquela que este nosso país – infelizmente – nunca conseguiu construir de modo consistente, sapiente e duradouro. Todavia, ao longo dos anos, muita coisa tem mudado: novas aproximações têm sido feitas no âmbito político e artístico, com iniciativas de estreitamento e confluências culturais.


E é neste último âmbito – o cultural - que podemos sempre nos entregar para nos sentirmos maiores que as fronteiras dos países. É com os artistas, que encontramos incessantes aproximações das subculturas geográficas em favor de uma grande cultura universal, em busca de um diálogo pleno e entrosado de amor à arte humana. Nesta descrição encaixa-se perfeitamente a figura do pianista Bruno Belthoise, francês de berço, português de coração mas artista do mundo. O seu mais recente trabalho discográfico – “Diálogos” (editora Coriolan) não podia ser um monólogo solitário, mas uma convergência de identidades sonoras partilhadas e em plena confidência com um outro pianista: João Costa Ferreira, português de berço, francês de coração e claro... outro artista do mundo. É num diálogo pianístico a 4 mãos, que encontramos “Diálogos”: uma colectânea de interpretações ao longo de vários anos, que perfazem uma súmula da actividade artística de ambos os músicos, em busca de cruzamento floral e indelével do repertório musical francês e português.


E que repertório podemos encontrar neste trabalho bilingue? Os pianistas propõe-nos uma simbiose entre a música novecentista e a música do nosso tempo, interligando as tendências do “fin de siécle” parisiense com novas composições lisboetas. Confusos?

 

Pas du tout! Os diálogos e os veios comunicantes que encontramos neste disco são límpidos e cristalinos. Comecemos com duas obras que se inspiram - de modo distinto, verdade seja dita - em tradições populares portuguesas e que se revelam aqui numa surpresa agradável não só pela novidade de presença em disco, como pela candura que ambas as obras nos revelam na sua construção. A primeira obra é do pianista, compositor e professor português José Vianna da Mota, uma das figuras mais importantes do seu tempo no meio musical e que marcou sem dúvida, toda uma geração de pianistas. A sua obra “Ein Dorffest” - aqui em estreia mundial de gravação – é uma obra juvenil que relata uma festa numa aldeia em cinco quadros imaginativos e com várias características de índole popular na construção dos temas principais. Só podemos regozijarmo-nos com tamanha descoberta, pois esta obra só há pouco tempo foi publicada e disponibilizada ao público melómano e aqui encontrarmos, finalmente, a sua materialização sonora. É uma obra de franca jovialidade, que Bruno Belthoise & João Costa Ferreira nos trazem aqui. Destaque-se que cada andamento partilha o mesmo material temático, o que nos dá a clara sensação de um tema e variações bem conseguido, e enfatizado superiormente pelos seus dois intérpretes. A segunda obra é do incontornável Fernando Lopes-Graça, que na sua busca etnomusicológica, deixou a sua criatividade ser permeada por ondulações telúricas. “Cisirão, Cisirão” é uma agradável descoberta na sua versão a 4 mãos: a harmonia é expandida no registo e os contrastes motívicos são ainda mais enfatizados nesta miniatura inaudita, principalmente na interpretação cuidada presente neste disco.

 

Uma temática transversal que transparece neste duplo disco é a infância inocente romantizada pelo espírito sonhador dos compositores como também na infância recreada através de histórias imaginativas. A presença da incontornável Suite “Dolly” de Gabriel Fauré ou a pouco conhecida “Une Semaine du Petit Elfe Ferme-Loiel” de Florent Schmitt são disso exemplos. Em vários andamentos, A suite “Dolly” é um ex-libris da admiração da infância rica em imaginação, brincadeiras e carinho paternal. Apesar de versão orquestral ser mais conhecida (que nem foi Fauré o seu autor), a versão original a 4 mãos transmite-nos verdadeiramente a sensação de cumplicidade entre pares de mãos de diferentes gerações, e que aliás, são a base da popularidade histórica do repertório para esta formação camerística. Mas não nos equivoquemos: a interpretação encontrada neste disco é de dois adultos em plena força interpretativa. Oiçamos o trabalho robusto e entrosado de articulação e de rubatos no “Kitty-Valse” e na velocidade imprimida no “Mi-a-ou” que se expande musicalmente bem para além do o título do andamento, que refere a má pronúncia do nome do irmão que a criança dedicatária fazia com apenas dois anos (a pequena Régina — Héléne Bardac). Bruno Belthoise & João Costa Ferreira propõe-nos aqui uma execução imaculada mas arrojada, pois assumem as peças não pela sua caracterização infantil mas pela sua pujança mediática e por consequência, mais escrutinada. Uma posição de louvar, mas que pode não agradar a todos os ouvintes.


Florent Schmitt foi pupilo de Fauré, pelo que a interpretação de “Une Semaine du Petit Elfe Ferme-Loiel” parece lógica e sequencial. E não nos enganamos completamente: esta obra em vários andamentos baseada num conto de Hans Christian Andersen é melodiosa, fresca, bem na sequência do contributo do mestre francês. Mas é muito mais que isso: ela é a porta certa para descobrir este compositor quase desconhecido fora de França, com uma produção musical de enorme interesse, tornando Florent Schmitt num digno descendente de Fauré, e cúmplice de Debussy, Ravel, Roussel – ouso incluir até mesmo Stravinsky - na música francesa da primeira metade do século XX. Bruno Belthoise tem sido desta forma, um intérprete e divulgador incansável deste compositor e desta obra originalmente para piano a 4 mãos. Atrevo-me a dizer que com João Costa Ferreira, Belthoise aqui firma uma interpretação incontornável: por exemplo, o segundo andamento “La cignone lasse” é interpretada de modo tão tocante que nos obriga a ouvir repetidamente para nos imbuirmos desta Sarabande de inefável magistralidade. E o que dizer do quinto e sétimo andamentos (“La ronde des lettres boiteuses” e “La parapluie chinois”) que nos fazem saltitar na cadeira de tamanha excitação?


Oura temática em destaque está na Dança figurada, aqui transmutada em diferentes aproximações estilísticas, tanto na perspectiva portuguesa como na francesa. No primeiro caso, destacam-se duas obras miniaturais de Sérgio Azevedo que circundam a dança como inspiração primária. A primeira obra, “Duas Borboletas para Olga” propõem o Tango e a Valsa numa assimilação em pastiche e de sobreposição de ideias musicais. O Tango é sem dúvida o andamento mais inspirado, com uma apurada e atenta execução do Bruno Belthoise & João Costa Ferreira em relação às dissonâncias e aos gestos disruptivos que grassam no andamento. Na segunda obra, “Sonatina n.º 2” – em estreia absoluta de gravação - contemplamos três andamentos ao estilo de suite, com um Prelúdio e duas danças contrastantes conseguintes. O Prelúdio é de inspiração claramente stravinskiana, com moldes politonais e recortes melódicos de articulação métrica superiormente executadas pela dupla de pianistas. Por outro lado, o segundo andamento “Moonlight at Waikiki” é uma tentativa porventura bem conseguida da misteriosa música dos filmes dos anos 40, embora melodicamente pareça sempre ficar aquém do alcance do impulso inicial. A contrapor, o terceiro andamento “Tarantella”, é uma agradável construção contrapontística excelentemente enfatizada pelos pianistas, com suficientes ganchos motívicos para nos deixar presos do início ao fim, suspirando por mais articulações rítmicas como aquela que antecede a reexposição do material temático inicial.

 

Para fechar a temática dançante, temos claro, a “Danse Macabre” de Camille Saint-Saens, que não passa despercebida neste trabalho discográfico: a famosa obra orquestral está aqui transformada num acto de contemplação da exploração das matizes tímbricas e orquestrais que um piano sozinho pode aspirar, especialmente às mãos de pianistas do calibre das de Bruno Belthoise & João Costa Ferreira. O início aspirante, a luxuosa dança sobrenatural e consequente fuga e consequentes elaborações melódicas e harmónicas sobre o tema inicial de exploração do registo do instrumento, conseguem transportar-nos ao mundo imaginário do compositor francês até ao fecho final em sussurro. Outra presença de Camille Saint-Saens neste duplo disco consiste no seu famoso “Le Cygne” (do Carnaval dos Animais), que em formato de piano a quatro mãos não traduz melodicamente numa versão de destaque mas que compensa por ausência momentânea da versão original com violoncelo.

 

Por fim, destacam-se três obras surpreendentes, não só pela sua frescura musical e programática,como pela magnitude interpretativa que Bruno Belthoise & João Costa Ferreira impingiram nelas de modo a se suplantarem às anteriores peças.

 

A pequena peça “Soundtrack” de Olga Silva não é uma peça de portento construtivo, bem pelo contrário: a sua ideia de recriar as bandas sonoras de filmes natalícios, da felicidade inocente da época e de memória feliz é propositadamente facilitada aqui numa balada de fácil deglutição. Mas nesta simplicidade reside a verdadeira dificuldade: a interpretação ao teclado de modo a proporcionar uma maior fruição melómana. E Bruno Belthoise & João Costa Ferreira conseguem-no de modo supremo: o transporte de cada nota nos gestos simples da melodia, os arpejos acompanhadores na exacta e necessária medida de dinâmica e por fim, os rubatos sincronizados entre os dois pianistas oh... enlevam uma música simples a uma música memorável.


Acabado o sonho, aterramos sem rodeios na temática da Morte, que as últimas obras em falta nos desafiam. O temor pela temática não nos deve cegar nos sentidos e na apreciação das obras musicais: ao invés, devemos abrirmo-nos irremediavelmente para ela. “Mers Mortes” de Jean-Pierre Deleuze é uma conspícua presença neste disco, não só pela variação de idioma estilístico – embora claramente scriabiniano – mas também pelo apelo emocional que a obra transporta nos seus dois andamentos. O primeiro andamento “Comme une vision de désolation” abafa-nos a respiração com a sua torrente contínua de marasmo anímico e turbulências harmónicas sem dissipação. O segundo andamento “Souffles”, faz-nos caminhar irremediavelmente para a ponta da tábua, certos do fim, do extermínio completo do respirar. A portentosa execução destes dois andamentos por partes de Bruno Belthoise & João Costa Ferreira, não pode ser suficientemente realçada: a capacidade de transmitir ao ouvinte este acinte, este repúdio e por consequência, esta fruição musical libertadora, só está ao alcance de músicos de primeira linha.


E para cimentar de modo definitivo e cabal esta conclusão, temos “Música para 4 mãos” de Carlos Marecos. Tem um título enigmático – ao estilo de Morton Feldman – mas a sua inspiração parte de duas melodias populares de alusão à morte, que o compositor aqui aglutina em duas posturas contrastantes: uma primeira secção lenta e meditativa e uma secção rápida aguerrida e de transe. Apesar de ser uma obra diferenciadora idiomaticamente do restante trabalho discográfico, Bruno Belthoise & João Costa Ferreira não se apresentam acanhados: a dramatização necessária nesta obra, principalmente na sua terceira e última secção – de retorno ao andamento contemplativo, com escalas cromáticas descendentes e execução de melodias nas cordas do piano - proporcionam ao ouvinte uma multitude de descobertas e sensações, apenas conseguidas na audição repetida da obra. Um verdadeiro banquete caleidoscópico de uma só interpretação e
obra!

 

As brilhantes carreiras pianísticas de Bruno Belthoise e de João Costa Ferreira são testemunhos mais que suficientes da qualidade artística e sensibilidade dos dois artistas e pela sua paixão pela música dos seus países de nascimento – França e Portugal. Assim, “Diálogos” é um trabalho discográfico de enorme riqueza, tesouro confluente e registo fundamental do fino entrosamento artístico destes dois pianistas, num só coração batente, de plena vida. Uma súmula de um mundo musical luso-francês de rara certeza e clareza. Mas como diria Albert Camus: “Si le monde était clair, l’art ne serait pas”.

 

 

Janeiro 2023

www.nunojacinto.com

O autor não reconhece o Acordo Ortográfico de 1990.

Publicado na Revista Da CAPO (online) a 28 Fevereiro de 2023

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