Sandra Bastos
Considerado um dos mais promissores maestros portugueses na actualidade, Pedro Neves é também Maestro Convidado da Orquestra Gulbenkian, desde esta temporada (2013-2014). Além de maestro titular da Orquestra Clássica de Espinho, está a fazer doutoramento na Universidade de Évora sobre as seis Sinfonias de Joly Braga Santos.
Da Capo (DC) - É apontado como um dos melhores maestros da sua geração…
Pedro Neves (PN) - Isso é sempre uma coisa difícil de qualificar. Mesmo a nível internacional, é difícil dizer que este é o melhor ou aquele é o melhor. Acho que o importante nesta actividade é fazer um trabalho de qualidade, o mais sério possível, e com o máximo de exigência para consigo próprio, ou seja, temos de ser sempre autocríticos com o que estamos a fazer e tentar evoluir. A partir do momento em que deixamos de fazer isso, deixamos de evoluir.
Acho que é o caminho que tento imprimir neste meu métier, é ser exigente, fazer o máximo de trabalho possível, de estudo e preparação, e depois tentar pôr isso em prática.
DC - Mas é bom ver o seu trabalho reconhecido?
PN - Claro que é bom, mas o mais importante é o sentimento que a pessoa tem na entrega que dá ao trabalho, acho que isso faz parte da profssão artística, particularmente dos músicos. Tem de ser um bocadinho assim, não é um trabalho de escritório, no sentido em que fazemos o nosso trabalho e desligamos a seguir. É uma entrega constante e a partir do momento em que deixamos de fazer isso, deixamos de ter esse lado artístico a funcionar. A nossa luta é sempre essa.
DC - Quais os princípios que estão na base no seu trabalho?
PN - É sempre a preparação técnica, o estudo da partitura ou de um instrumento, no caso de um músico, acho que isso tem de ser levado com muita seriedade e disciplina. Só assim se atinge um certo nível que, depois, nos permite passar para outro degrau e estar à vontade para conseguir chegar mais longe. Quanto mais por dentro da música estivermos, mais à-vontade estivermos com o texto, mais longe artisticamente conseguimos ir em relação a qualquer peça. Esse é o nosso objectivo. É uma coisa sem fim.
"nunca decidi que queria ser maestro, aconteceu por acaso"
DC - Como é que se estuda direcção de orquestra?
PN - Estudar direcção de orquestra é uma coisa relativamente recente, porque é uma actividade muito abrangente e que exige conhecimento de várias áreas de uma forma equilibrada. Não se pode saber muito de uma coisa e depois pouco de outra, acho que se tem de saber também lidar com as pessoas, em grupo, saber quais as palavras certas para exprimir as nossas ideias, às vezes isso é tão importante como a nossa preparação.
Agora há os cursos de direcção de orquestra, as licenciaturas que ensinam sobretudo a base técnica, a base teórica e depois vão-nos dando algumas ferramentas para pôrmos em prática, quando passarmos para a vida real. Só depois começa a aprendizagem no terreno, que é a experimentação daquilo que aprendemos - isso é outra fase! Aí é que é preciso dirigir, que é para nós próprios sabermos se isto resulta ou não, se fiz mal ou se fiz bem, tentar fazer esta auto-avaliação constante.
DC - Como é que começou a interessar-se pela direcção de orquestra?
PN - É um bocadinho estranho porque eu nunca decidi muito que queria ser maestro, aconteceu por acaso.
Eu aprendi música na banda flarmónica da minha terra, com a qual ainda hoje tenho ligação, e num determinado momento, como eu andava no Conservatório, tinha talvez 13 anos, decidiram, dentro da própria banda, experimentar algumas pessoas para fazer ensaios e a escolha recaiu sobre mim. Comecei a dirigir empiricamente sem saber o que estava a fazer, fez parte do acaso, ao longo desse tempo fui dirigindo enquanto fazia o meu estudo normal de violoncelo.
Mais tarde, cheguei a tocar na Orquestra Metropolitana até que, num determinado momento, decidi, um pouco por descargo de consciência, procurar um conhecimento mais técnico, mais teórico, e a aproveitei o factor de haver o curso de direcção de orquestra na Metropolitana e, assim, fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Mais tarde tive de fazer uma opção, e optei por este caminho – as coisas foram acontecendo por acaso.
DC - Alguma vez se arrependeu por ter optado pelo caminho da direcção de orquestra?
PN - Às vezes desconfo se este foi o caminho certo. Mas tenho a consciência de que as coisas foram feitas com uma certa solidez, por isso acho que foi o caminho certo.
"é difícil ser original, ter a sua própria ideia…"
DC - Quais as maiores difculdades e compensações do ofício de um maestro?
PN - Difculdades, sobretudo na preparação da partitura, descodifcar o texto, ou seja, ter um grande conhecimento da peça, ter ideias próprias – hoje em dia somos bombardeados com milhares de gravações e às vezes é difícil ser original, ter a sua própria ideia…
Depois vem a parte mais difícil que é pôr em prática aquilo que estudamos e imaginamos. Nem sempre conseguimos isso por variadíssimas razões, porque aquilo que pensamos não foi aquilo que encontramos, porque não conseguimos comunicar a nossa ideia… essa é a difculdade: aplicar na prática aquilo que construímos na nossa cabeça.
O mais compensador é quando chegamos ao fim do trabalho e sentimos a sensação, que o momento do concerto foi realmente mágico, sentir que essa sensação foi atingida, embora haja sempre coisas a melhorar, que houve qualquer coisa de especial é a melhor compensação.
DC - Tem dirigido quase todas as orquestras em Portugal. Com a crise teve mais trabalho?
PN - Tenho tido mais trabalho. Acho que a crise tem sido, de alguma forma, favorável aos maestros portugueses, o que é bom, porque para nós termos maestros com qualidade precisamos de ter prática. É impossível chegar a uma orquestra sem nunca ter dirigido e ter logo uma grande maturidade e experiência. Isso não existe.
Só com prática é que vamos lá e, à medida, que vamos dando oportunidade a várias pessoas, vão surgindo valores e isso é o mais importante a reter.
DC - A crise terá estimulado a aposta nos maestros e intérpretes portugueses. Depois desta crise, esta aposta será para continuar?
PN - Espero que sim, que isto seja uma coisa boa para depois se conseguir o equilíbrio.
É importante dar oportunidades aos jovens, assim como é importante também ter gente de fora que possa trazer coisas novas, para que possamos aprender com
elas. O equilíbrio parece-me aqui a palavra melhor para defnir esta relação de forças entre o que é nacional e o que é internacional.
DC - Como é ser maestro em Portugal?
PN - Ser maestro em Portugal ainda continua a ser um desafo porque ainda temos poucas estruturas que nos possam acolher, ainda temos uma tradição musical, especialmente nas orquestras, relativamente pequena. Embora, por exemplo, tenhamos muita tradição ao nível das bandas.
Nestes últimos 15 anos, tem havido uma evolução enorme de estudantes de música e consequentemente a qualidade subiu fantasticamente – agora temos gente muito bem preparada. Era bom que nós próprios não nos deixássemos fugir para outros sítios, porque é esta a tendência, e começasse a haver mais estruturas que nos podessem acolher. Sei que é estranho dizer isto em tempo de crise, mas seria uma boa medida. Não precisavam ser grandes estruturas, bastavam pequenas estruturas para acolher esses músicos, para não deixar fugir gente muito boa.
DC - Tem dirigido no estrangeiro?
PN - Não tenho dirigido muito lá fora. A última experiência que tive foi na Finlândia, em que fiz um programa só dedicado a Joly Braga Santos, um compositor completamente desconhecido para eles. Foi num pequeno festival, a aceitação da orquestra e do público foi muito interessante.
Joly Braga Santos é um compositor com um percurso muito interessante, desde o início da sua produção até ao fim. Nota-se a procura, a evolução, mesmo uma certa abertura ao que se passava fora de Portugal. Tanto ele como Freitas Branco são os dois compositores mais importantes do século passado em Portugal e merecem ser tocados com bastante regularidade.
Claro que há outros compositores com muito interesse e completamente desconhecidos.
DC - Nota diferenças signifcativas entre as orquestras portuguesas e as estrangeiras?
PN - Noto sobretudo nas estruturas. Há estruturas que são mais débeis e que logicamente transmitem essa debilidade à orquestra. Há estuturas mais fortes que
fazem com que as pessoas possam elevar o nível muito mais alto. Isso faz a diferença em Portugal, ou seja, nós precisamos de estruturas mais fortes, mesmo que seja uma orquestra pequena, pode ser pequena mas ter uma estrutura forte, em que os músicos estejam bem apoiados e não estejam sempre a pensar se vão ter salário, se vão ter contrato, se vão ter condições de trabalho e vão para os ensaios
“Espero contribuir para que algumas das peças portuguesas, pelo menos as melhores, comecem a voltar ao repertório de orquestra”
DC - É também Maestro Convidado da Orquestra Gulbenkian para esta temporada. Qual é o projecto que está a desenvolver na Orquestra Gulbenkian?
PN - Na Orquestra Gulbenkian, com a qual já tinha tido uma actividade regular, passei a ter este cargo de maestro convidado, mais dedicado à música portuguesa. É bom, porque, de alguma forma, tinha a vontade de pôr em prática muito do nosso repertório, que é posto de lado e esquecido, por isso foi com muito agrado que recebi o convite especifcamente para isto, ou seja, fiquei muito satisfeito. Agora espero conseguir contribuir para que algumas das peças portuguesas, pelo menos as melhores, comecem a voltar ao repertório de orquestra e das salas de concerto.
A música acaba por ser um pouco como os maestros, precisa de ser tocada. Há peças que são tocadas uma vez e que só voltam a ser tocadas daqui a 50 anos. Assim, não temos a oportunidade de a conhecer bem, pois a peça tem de crescer por si própria, tem de ser tocada e dirigida por várias pessoas para ter várias visões diferentes.
No fundo, é aquilo que nós fazemos com o repertório standard, à medida que vai sendo tocado, vai sendo desenvolvido e vai crescendo. Temos que nos habituar a fazer isto com a música portuguesa e não deixar que a música portuguesa seja um gueto fechado, mas passe a ser música como a outra música. Temos música boa, má, média, como toda a gente.
DC - Que projecto desenvolve na Orquestra Clássica de Espinho?
PN - Em Espinho desenvolve-se um projecto curioso, uma vez que orquestra está ligada ao Auditório e à Escola Profssional de Música de Espinho. Consegue, assim, criar um equilíbrio muito interessante entre o nível médio dos estudantes da própria escola e o nível dos que vêm de fora, mais desenvolvidos, que frequentam o nível superior.
Ao longo do ano, a Orquestra trabalha por projectos e por programas. Tenta-se sempre fazer coisas interessantes e diferentes, que possam desenvolver pedagogicamente a orquestra e os alunos e, por outro lado, sejam interessantes para o público do auditório. Acaba por ser um projecto único nesta medida em que junta diferentes níveis de aprendizagem de estudantes e porque faz desenvolver os estudantes.
DC - E na Camerata Alma Mater?
PN - A nossa Camerata é basicamente um grupo de câmara que construímos e que decidimos fazer em 2010, que contém dois quartetos que funcionam entre si: o Quarteto de Cordas de Matosinhos e o Quarteto de Cordas Artzen, e mais outros colegas. É um grupo familiar que funciona por projectos. Estamos a tentar conquistar a nossa posição no meio musical.
Desenvolvemos sobretudo repertório para cordas, porque achamos que é uma área que é preciso desenvolver e apostar. O papel do maestro é igual aos outros, é construir um trabalho camerístico, em que as pessoas falam e dão as suas opiniões, diferente de uma orquestra sinfónica, onde é difícil, pelo elevado número de pessoas, ter esse intercâmbio de ideias. Vamos tocar nos Dias da Música e na temporada do CCB.
“O problema do nosso ensino é estarmos sempre a mudar as regras”
DC - O que pensa sobre o ensino da música em Portugal?
PN - Eu acho que o ensino da música em Portugal tem sofrido muitos avanços e recuos, apesar de haver muita gente a estudar, gente muito boa, acho que se devia estabelecer, de uma vez por todas, um modelo que funcionasse bem e de pensá-lo a 50 anos. O nosso problema é que a cada ano estamos sempre a mudar as regras e isso não é muito favorável.
Apesar de tudo, os estudantes têm crescido imenso e o nível tem sido fantástico. A estrutura não tem que ser enorme, tendo em conta o tamanho do nosso país, mas devia ser uma estrutura mais pensada artisticamente e, sobretudo, pensar as coisas a longo prazo. Tudo demora o seu tempo, não nasce de um ano para o outro.
DC - Esta nova geração de músicos portugueses, que começou na sua geração, pode fazer a diferença?
PN - Eu acho que sim, embora não podemos menosprezar tudo o que está para trás, pois fora as pessoas que nos deixaram este testemunho. Esta geração pode fazer a diferença pelas condições que lhe foram dadas, à minha geração e às seguintes. Hoje tudo é mais fácil de obter, a informação é mais fácil, ir a uma masterclass, tudo acontece muito rápido, é só as pessoas quererem, terem a vontade. Isto é uma responsabilidade enorme para a geração actual, de fazer melhor, porque realmente tem mais meios para fazer melhor e para se desenvolver mais.
DC - Acha fundamental um aluno passar pelo estrangeiro para ter uma formação mais completa?
PN - Acho interessante ter contacto com outras culturas, mas não acho assim fundamental, como a ideia de que quem não passar pelo estrangeiro não será um excelente músico, isso é um mito! Faz parte de um músico ter contacto com outras realidades, através da internet ou de masterclasses. Mas hoje em dia é muito fácil, não precisa de estar no estrangeiro para ter contacto com o que lá se faz.
Nós precisamos é de valorizar aquilo que temos cá e às vezes temos uma certa difculdade, ou seja, precisamos de ir lá fora e voltar para sermos reconhecidos.
“Nós também temos um El Sistema, que são as bandas”
DC - Qual foi o papel da Banda 12 Abril na sua formação?
PN - Foi o sítio que mudou a minha vida, onde comecei a aprender e me fez entrar neste mundo da música, à semelhança de muitos músicos em Portugal. É lá que devo tudo! Ainda mantenho ligação, faço um ou outro concerto esporadicamente, como tenho lá amigos, família…
DC - Não eliminou do seu currículo a ligação à Banda, ao contrário de outros músicos…
PN - As pessoas não podem negar a sua origem que, neste caso, é honrosa. As pessoas, por vezes, têm tendência a julgar que as bandas têm um lado depreciativo, mas acho que isso tem a ver com uma imagem antiga. Penso que, a partir de agora, vão dar outro tipo de valor porque realmente são sítios onde, por exemplo... Nós damos muita importância ao El Sistema, o projecto venezuelano. As pessoas esquecem-se que nós também temos um El Sistema, que são as bandas, só que ninguém deu valor.
As mais de 700 bandas que nós temos mudaram a vida de muita gente, ensinam música grátis às pessoas e fazem um papel social enorme! É pena que este Sistema das bandas não tenha também vigorado para o lado das cordas, isso fazia-nos falta. No lado dos sopros faz o seu papel, que é espalhar a música pela comunidade.
“o momento grande é sempre quando alguém nos deixa uma marca e nos dá ferramentas para seguir”
DC - A sua carreira ainda é muito jovem, mas até agora quais foram os momentos, as pessoas mais marcantes?
PN - Os momentos marcantes são sempre aqueles em que temos contacto com as grandes orquestras, quando temos oportunidade de fazer um programa musicalmente exigente. É sempre marcante o momento em os nossos professores nos deixam um legado, com o qual vamos pegar e fazer o nosso próprio percurso.
Todos os professores de violoncelo que tive, mesmo os primeiros professores, são pessoas que guardo com grande apreço porque foram as pessoas que me ensinaram tudo. Mais tarde os professores de direcção de orquestra, os maestros… esses são os momentos grandes que nos deixam marcas e que nos fazem caminhar para a frente. Para mim, o momento grande é sempre esse, quando alguém nos deixa uma marca e nos dá ferramentas para seguir.
DC - E quais os momentos que gostava ainda de viver?
PN - Não penso muito nisso. Para mim, o que gostava de viver está sempre relacionado com a música, coisas que gostava de fazer e ainda não fz e que procuro realizar, como a peça que gostava de dirigir, a orquestra que gostava de dirigir…
No fundo, é o caminho que nos faz andar para a frente, passo a passo, mas que o percurso seja sólido.
DC - Que conselhos quer deixar à comunidade musical?
PN - Especialmente aos músicos: seria bom que continuassem a fazer o seu trabalho sério, disciplinado, apesar de pensarem que é uma coisa repetitiva, é preciso esse esforço de trabalho.
Para as pessoas que vão ouvir os concertos, para o auditório e para as pessoas que nunca foram ouvir concertos: lanço-lhes o desafo de irem, de verem. Acho que têm o receio de ir e não perceber ou não gostar, mas as pessoas ao ir vão gostar.
Tornar a música parte da vida, um hábito da vida das pessoas, fazer este acto de lazer e ao mesmo tempo de crescimento espiritual, de conhecimento, senão as pessoas caminham de casa para o trabalho e vice-versa e ficam com a vida um bocado vazia. O cérebro precisa de outro tipo de estímulo, senão fca demasiado embrutecido.