Luís Tinoco

“a melhor aula que qualquer aluno de composição pode ter é quando ouve a sua música tocada”

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Da Capo e João Vidinha

  • Luís Tinoco
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Falamos de Luís Tinoco como um dos mais importantes compositores portugueses da atualidade, autor de obras históricas como Round Time, Evil Machines, From the Depth of Distance, Paint Me, Lídia, Passeios do Sonhador Solitário e, mais recentemente, Concerto de Violoncelo, estreado em 2017. Paralelamente, é Compositor Residente no Teatro Nacional de São Carlos, onde tem destacado a música portuguesa.

Mas não podemos falar de Luís Tinoco apenas como compositor. Intrinsecamente ligado ao seu percurso está o seu papel como professor na ESML, como programador na Antena 2 e, nos últimos 11 anos, como diretor artístico do Prémio Jovens Músicos.

 

 

Da Capo (DC) - Como nasceu o seu interesse pela composição?

Luís Tinoco (LT) - Eu tenho uma ligação com a música que nasce no contexto familiar e, portanto, em várias gerações tenho pessoas na minha família que se dedicaram às artes e à música; nomeadamente a minha avó era concertista pianista – quando era miúdo ia com ela ver concertos - ainda me lembro de ver o Pedro Burmester nas finais do Concurso Vianna da Mota.

O meu pai, sendo arquiteto e artista plástico, esteve também ligado ao movimento do jazz em Portugal, da geração dos anos 50/60 no Hot Clube, compôs muita música também, desde canções a música para teatro, música para cinema. E em casa dos meus pais havia jam sessions com músicos que iam lá parar em noites de convívio e que muitas vezes acabavam em momentos musicais, ao piano, com pessoas a cantar, a tocar guitarra. E depois, sessões de estúdio. O meu pai, por exemplo, nos anos 70 gravou um disco de “rock sinfónico” chamado Homo Sapiens e eu lembro-me que, na altura, passei noites e horas a dormir nos estúdios de gravação.

A pergunta que me fizeste surge algumas vezes “como é que surgiu o meu interesse pela música pela composição?”. Na realidade o meu interesse pela música e pela composição esteve sempre presente porque fazia parte do meu dia a dia.

O meu pai lia-nos histórias ao piano - a mim e ao meu irmão -, a fazer a banda sonora. Eu e o meu irmão desde muito miúdos fazíamos improvisações com o meu pai, aquela brincadeira de ele sentar-nos ao colo e fazer o acompanhamento, e depois nós tentarmos improvisar melodias com o indicador. Houve um treino que não foi intencional mas que, subconscientemente ou de uma forma completamente espontânea, acabou por gerar uma necessidade de me sentar ao piano e de improvisar, de fazer músicas.

Por isso, foi uma coisa que me acompanhou sempre, mesmo até numa fase que eu nem sequer me imaginava a viver profissionalmente da música, porque quando acabei o ensino secundário, o meu objetivo era, na realidade, estudar cinema e entrei no curso de cinema da ESTC. Foi esse o meu percurso inicial.

 

 

“Mais do que ser necessária uma leitura transversal das artes, é preciso ter uma leitura transversal daquilo que nos rodeia”

 

 

DC - E isso pode influenciar alguma da sua música...

LT - O cinema, especificamente não sei. Eu acabei por sair do curso de cinema precisamente porque o meu interesse por fazer música e por compor começou a intensificar-se. Chegou a um ponto em que comecei a ver que estava a dedicar mais tempo à música do que ao estudo do cinema e, portanto, acabei por me desviar; nem cheguei a acabar o primeiro ano do curso de cinema. Ainda andei um ano pelo IADE a fazer cursos de audiovisuais, andei a assistir a cursos de história de cinema - com o professor Luís de Pina, que era na altura diretor da Cinemateca. Portanto, houve ali uma fase em que andei entre os dois mundos mas, na realidade, acho que a minha música, sim, tem influências de componentes claramente visuais mas não necessariamente cinematográficas.

 

DC - Faz sentido relacionar as artes quando se compõe?

LT - Faz todo o sentido se for esse o desejo do compositor. Eu acho que em qualquer forma de expressão artística - seja ela a composição, seja a literatura, as artes plásticas, a arquitetura, seja o que for - uma das regras que eu tento passar aos meus alunos é que não existem verdades universais e, portanto, não sou um grande adepto daquela ideia de que uma pessoa, para desenvolver a sua criatividade, tem de ser interdisciplinar ou tem de ter uma experiência e um contacto muito intenso com as outras formas de expressão. Não tem que ter, ora, acho é que se tiver não lhe faz mal nenhum!

Mais do que ser necessária uma leitura transversal das artes, é preciso ter uma leitura transversal daquilo que nos rodeia. É importante ver os noticiários, é importante, por exemplo: eu percebo muito pouco de astrofísica, mas sou um apaixonado por tudo o que sejam temas de ciências, fico horas a ver documentários sobre investigações espaciais, sobre a evolução da tecnologia e é uma área que não tem nada a ver com o que eu faço profissionalmente, no meu dia a dia.

É, portanto, esse lado de tudo o que nos rodeia, desde as relações entre as pessoas, o meio em que vivemos, aquilo que os outros escrevem, aquilo que os outros pensam, aquilo que nos afeta do ponto de vista das decisões políticas, os avanços da ciência, os avanços da tecnologia, aquilo que os coreógrafos, os produtores, os cineastas fazem. Tudo isso é alimento para uma pessoa - seja um intérprete, seja um compositor – se fica fascinado com o seu virtuosismo técnico e, se não olhar para o lado, provavelmente o que vai acabar por acontecer é que passa a ser um excelente intérprete ou passa a ser um compositor com muita técnica, mas há qualquer coisa que não evolui para além disso.

 

 

“as coisas têm acontecido na proporção da minha capacidade de resposta enquanto compositor”

 

 

DC - E que balanço faz da sua carreira? Que fase pode destacar e que momentos foram mais marcantes?

LT - Eu acho que na área em que eu estou o termo carreira é um termo perigoso. (risos) Digo isto no sentido de perguntarem a um músico que escreve música contemporânea como é a sua carreira. É quase como perguntarem como têm sido as minhas viagens à lua ou a marte. São coisas que eu não sei se podemos pôr nesse contexto. Normalmente, uma pessoa fala de carreira e isso implica uma linha, um progresso, uma evolução, com um determinado tipo de dimensão maior do que aquilo que acontece normalmente na vida do compositor.

O compositor que escreve música (e não estou a falar de mim, estou a falar em geral, portanto do conjunto daquilo que eu acho que é o trabalho do compositor) faz um trabalho quase anónimo, muitas vezes feito nos bastidores em que se escreve música e depois ela torna-se visível sempre através de outros - a não ser que seja música eletrónica, como é óbvio.

Mas quando é música escrita para instrumentistas, depois tem de ficar à espera do intérprete e da oportunidade para a sua execução pública. Raramente isso é seguido, depois, de uma fixação em suporte mecânico, um disco, um vídeo, seja o que for que permita que a partitura continue a ser usufruída para além do momento da estreia. Portanto, estamos a falar de coisas que têm realmente um espaço de realização que não é particularmente visível e que, muitas vezes, é efémero. Existe naquele momento, depois desaparece por 10 anos, 20 anos, às vezes nunca mais volta a acontecer. Não é sempre assim, obviamente. Quem faça música no contexto da música pop, que tem um mercado, que tem um determinado tipo de mecanismo - uma indústria por trás, o termo carreira acaba por ser mais óbvio, não é?!

Agora para responder à pergunta duma forma mais objetiva. Eu acho que apesar de todos estes constrangimentos, estas características quase incontornáveis daquilo que é o nosso meio musical, eu tenho tido oportunidade de fazer coisas, de escrever música, portanto como é que eu identifico o meu percurso? Começo a estudar composição já um bocadinho tarde, precisamente porque eu estava a estudar cinema e quando entrei no curso de composição já foi com vinte e poucos anos, não entrei aos 18 anos. Durante o meu percurso de estudante na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) nunca tive a possibilidade de ver a minha música tocada. Não havia essa prática, os alunos de instrumentos fugiam dos alunos de composição.

Hoje em dia vive-se um ambiente muito melhor, mas na altura fiz o curso inteiro sem ter uma única peça tocada. A própria estrutura do curso não oferecia essas oportunidades aos alunos, havia muito a ideia de que o tempo que os intérpretes tinham de aplicar ao estudo era precisamente para tocar Mozart, Beethoven e Haydn.

E é quando vou para Inglaterra fazer o mestrado que começo a ter essa experiência fantástica de ter a minha música tocada. Portanto, eu começo a ouvir a minha música tocada no contexto da academia, dos concertos dos alunos de composição e de oportunidades que surgiam, de workshops que eram feitos: com os BBC Singers ou concertos de música de câmara no Southbank Centre, feitos com alunos de composição dos vários conservatórios em Londres. E aí eu começo a ter um momento no meu percurso musical que é o de “ah, para além de ver a minha música escrita, estou a ouvi-la”.

Regresso a Portugal (isto em 1999/2000, no virar do milénio) e começo automaticamente a dar aulas na ESML. Desde lá até aqui, o que tem acontecido é que eu tenho tido regularmente oportunidades de escrever música, tanto em contexto de música de câmara, como de música orquestral, principalmente depois de ter escrito Round Time para a Orquestra Nacional do Porto. Foi em 2002 que eu escrevi essa peça que, claramente, abriu-me espaço para trabalhar com orquestras. Tive duas oportunidades de trabalhar ópera, tenho tido também algumas oportunidades de trabalhar com dança mas, maioritariamente, aquilo que eu tenho feito é escrever para contexto orquestral, essa é talvez a parte mais intensa da minha produção.

Eu também não sou um compositor que escreva muito, não faço mais que duas peças por ano. No ano passado só fiz o concerto de violoncelo. O ano inteiro tive uma estreia e como parte da minha vida profissional é divida também com a rádio que faço, as aulas que dou, a direção do Prémio Jovens Músicos (PJM), vou guardando depois algum tempo, não muito, para a carreira de compositor. E, nesse sentido, acho que tenho tido coisas que têm corrido bem mas não são tão... Às vezes são mais sonantes do que de facto consequentes. As pessoas dizem “ah, escreveu uma peça para esta orquestra”. Sim, está bem, isso é muito bom, mas não é uma coisa que uma pessoa pense que de repente a sua música vá começar a ser muito tocada ou muito divulgada. Não. Passo a passo, devagarinho, as coisas têm acontecido na proporção da minha capacidade de resposta enquanto compositor.

 

 

“Round Time foi, de facto, uma peça muito importante para mim”

 

 

DC - Aproveitando a parte das obras, da evolução na escrita, que obra é que gostou mais de compor e/ou de ouvir?

LT - É engraçado, porque nós temos sempre a sensação que a última que escrevemos foi a melhor porque é aquela que expressa no momento a forma como estamos a pensar, o que é fazer música e aquilo que achamos que é mais interessante e aquilo que queremos ouvir, porque quando nós escrevemos música é porque queremos ouvir aquela música.

Portanto, a resposta para essa pergunta se calhar iria variando ao longo do tempo.

Entre 1995 e agora, 2018, há algumas peças que marcam momentos do meu percurso, claro que sim. Há pouco referi, o Round Time foi, de facto, uma peça muito importante para mim porque foi a primeira peça profissional para orquestra que eu fiz e lembro-me, na altura, do pânico que senti quando tive a encomenda. De, por um lado, ter aquela sensação de não conseguir dizer que não, porque eu queria aceitar a encomenda e queria escrever a peça mas, ao mesmo tempo, secretamente, um receio enorme de não conseguir corresponder ao desafio.

Essa peça tem esse elemento simbólico, tanto a nível individual (por eu ter conseguido, vá lá, superar esse receio), como depois a um nível já mais público (de caminhos que abriu). É talvez uma peça que marca o meu percurso. Se bem que em termos do prazer da escrita e da composição, devo dizer que quando trabalhei em contextos de colaboração passei por experiências que me deram imenso prazer e que quando estamos sozinhos a escrever em casa normalmente não as vivemos.

Vou dar um exemplo. Quando fiz, por exemplo, com o Rui Horta e o Stephen Plaice, a ópera Paint Me ou quando fiz com o Terry Jones as Evil Machines, aquela coisa de trabalhar com libretista, encenador, cantores, orquestra, durante meses em que nós vivemos com aquelas pessoas de uma forma muito intensa, achei uma experiência mais que enriquecedora, foi uma experiência que me deu enorme prazer.

 

 

“Quando uma pessoa faz música, não é preciso sair da comparação da música com texto e da música puramente instrumental”

 

 

DC - Já referimos aqui Paint Me, Evil Machines, tenho aqui outra referência ao bailado Lídia. A pergunta é se se considera um compositor eclético?

LT - Eu acho que, como ouvinte, sou seguramente eclético. Oiço muita música de géneros musicais diferentes, de correntes estéticas diferentes daquela em que eu considero que me insiro. E como tenho realmente uma admiração - e não digo isto para ser politicamente correto, como quem diz “ah, eu também oiço o trabalho deste ou daquela” - não, eu ouço de facto. Não só oiço, como divulgo enquanto radialista, etc.

Tenho uma forma de me relacionar com a música que é bastante transversal, vou aos concertos de música contemporânea, consumo imensa música jazz e quando as pessoas têm esse lado de não estarem fechadas dentro de uma bolha, em princípio estarão tendencialmente mais dispostas a responder a desafios que as façam sair da sua zona de conforto, daquilo que é o seu espaço criativo habitual.

Quando eu trabalhei com o Paulo Ribeiro - com o bailado Lídia - ou quando trabalhei com o Terry Jones ou o Rui Horta, com pessoas de outras áreas que não a minha, acho que manifestei esse ecletismo na capacidade de abraçar desafios e meios diferentes.

Vamos pegar no exemplo da música com texto. Uma coisa é, por exemplo, musicar um poema; outra coisa é musicar uma cena duma ação em que o texto é também um texto literário, mas que tem uma característica completamente diferente daquilo que é pegar nas palavras do poeta e fazer um ciclo de canções. Isso exige, de facto, uma certa dose de golpe de rins e, depois, principalmente quando se trabalha teatro musical, acho que também é preciso uma pessoa ter esse ecletismo no sentido de conseguir dar resposta em termos de escrita musical a desafios que estejam no texto e que nos ponham, enquanto compositores, em situações que, num contexto normal, não as procuraríamos.

Em Paint Me, por exemplo, há uma cena em que o libreto diz que uma cantora está a cantar uma ária (dum compositor fictício que não existe, mas no libreto aparece o nome dum compositor em que a ideia do libretista é poder parodiar os Puccini, os Rossini, todos esses compositores operáticos italianos). Nessa cena, a cantora tem que cantar uma ária duma ópera italiana que nunca existiu e quando chega o momento de cantar a nota mais aguda a senhora colapsa e desmaia. Tem assim um momento trágico e cai em cena. Lembro-me que quando estava a ler essa parte do libreto e quando me apercebi que nessa cena não podíamos pôr uma música do Giovanelli para citar, porque o Giovanelli não existia! (risos) Tive que ir, obviamente, investigar a música dos compositores italianos desse período com mais atenção, porque eu tinha de compor uma ária à maneira daqueles compositores, para os parodiar.

 

 

“a voz tem uma capacidade especial de comunicar e de nos tocar”

 

 

DC - Nos últimos anos escreveu um concerto para trompa e um concerto para violoncelo. Porquê esses instrumentos? Qual a inspiração para escrever para instrumentos solistas e quais são os próximos desafios nesse sentido? Será que partiu do instrumentista para o compositor ou do compositor para o instrumentista?

LT - No caso do concerto de trompa, sim, foi o Abel Pereira que me pediu para escrever um concerto para ele, numa altura em que a professora Elsa Pestana Magalhães (filha do mestre Adácio Pestana) queria também encomendar um concerto de trompa que fosse um tributo à memória do seu pai. Portanto, havia ali uma confluência de duas situações, de duas pessoas que me abordam: um enquanto solista, porque queria que eu lhe escrevesse um concerto; e outra enquanto herdeira do património do seu pai e que queria, obviamente, homenagear muito justamente a sua memória.

Por acaso, não deixa de ser curioso, porque se me tivessem pedido para compor um concerto para um instrumento de metal à minha escolha, muito provavelmente eu teria escolhido a trompa. Ou seja, foi uma coincidência feliz. Não que eu não ponha a hipótese de fazer um para trompete ou para trombone ou seja o que for, mas da família dos metais, a trompa é seguramente o instrumento de que eu mais gosto.

Isto é um pouco redutor, porque eu acho que um compositor normalmente gosta de todos os instrumentos; é como um pintor dizer que gosta mais de verde ou gosta mais de preto.

 

DC - Já estamos a entrar noutra pergunta. Será que tem algum instrumento ou conjunto de instrumentos que prefira?

LT - Ora aí está, a resposta genuína é “eu gosto de todos”, às vezes até daqueles que eu pensava que não gostava. Quando sou posto num contexto em que tenho de o utilizar descubro “ah, afinal é fantástico!”. Há essa curiosidade. Agora, eu tenho normalmente tendência para instrumentos que estão nos registos médios ou médios-graves.

No caso do violoncelo foi uma escolha minha. Sou um grande admirador do trabalho do Filipe Quaresma, há muito tempo que queria escrever um concerto de violoncelo para ele. Assim como tenho o projeto de escrever um dia um concerto de percussão para o Pedro Carneiro. Portanto, existem assim instrumentos que me têm acompanhado. Nas cordas, não digo que nunca venha a escrever um concerto de violino, mas seguramente não escreveria um concerto de violino antes de ter escrito um de Violoncelo.

No caso das madeiras, estou neste momento a acabar uma peça que estou a fazer - para saxofone e orquestra de sopros. Vai ser estreada em maio com o Alberto Roque, para assinalar os seus 50 anos (e eu já há muito tempo que andava a prometer que lhe escreveria uma peça). Depois, também tenho planeado um concerto de saxofone e orquestra para o João Pedro Silva. Mas, por exemplo, se eu pensar em instrumentos solistas com orquestra, o instrumento para o qual eu escrevi mais até hoje foi a voz humana. Algo que até há uns anos eu não me imaginaria a fazê-lo.

Por exemplo, quando escrevi as Search Songs, o meu primeiro ciclo de canções orquestrais, foi um desfaio que lancei a mim mesmo. Precisava de escrever para a voz humana porque ia compor as Evil Machines e senti que uma forma boa de me preparar para uma escrita com um contexto mais lírico era de começar por escrever um ciclo de canções. E acabou por ser um ciclo de canções orquestrais. Podia não ter sido, podia ter sido só voz e piano, mas foi o que aconteceu.

E confesso que fiquei surpreendido com o interesse que acabei de desenvolver pela voz humana (dito assim até parece que tenho alguma coisa contra cantores, nunca tive) mas achava que antes de escrever para voz humana queria escrever muita música instrumental.

Na realidade, quando escrevi o ciclo de canções, depois quando fiz as Evil Machines, ou quando escrevi From the Depth of Distance para a Ana Quintans, e a seguir a cantata Passeios do Senhor Solitário (que depois adaptei para versão de soprano e orquestra, com a Raquel Camarinha a cantar), senti que a voz tem uma capacidade especial de comunicar e de nos tocar. Não vou pôr em termos quantitativos, se comunica mais ou menos que outro instrumento.

 

 

“estou a trabalhar num projeto para conseguirmos gravar com a OSP obras de compositores portugueses”

 

 

DC - Desde 2016/2017 é compositor residente no Teatro Nacional de São Carlos (TNSC). Como tem sido esta experiência? Que projectos tem desenvolvido lá e será que podemos ouvir um dia uma ópera no Teatro? Uma ópera “portuguesa” - já houve Emannuel Nunes - mas cantada em português, compositor português, libreto português, etc.

LT - Vou começar a responder pelo fim, que é a questão de ser português, o libretista ser português, o compositor ser português. Eu tenho o maior amor pelo meu país. E, no que se refere à literatura, se há coisa que o nosso país tem é uma quantidade imensa de escritores absolutamente maravilhosos. Mas, dito isto, eu não sinto que pelo facto de ser português (e que para uma ópera ser portuguesa num teatro de ópera nacional), que tenha de ser obrigatoriamente cantada em português ou com libreto português. Ainda antes da questão da nacionalidade de quem compõe ou de quem escreve, a mim o que me interessa é “este texto interessa-me musicá-lo? Este libreto tem potencialidades e temas com os quais eu me identifico e que me apeteça musicá-los?”. Independentemente de ser escrito em castelhano, ou francês, ou português, ou inglês.

Há coisas que eu posso dizer: nunca escreveria uma ópera em alemão porque não domino a língua alemã ao ponto de poder musicá-la. Mas já escrevi música com texto em português, inglês, francês e só não escrevi em castelhano porque foi um bico de obra para conseguir direitos dos herdeiros do escritor que eu queria adaptar e chegou a um ponto em que se tornou impossível.

Portanto, dentro daquilo que são as línguas que eu acho que consigo dominar, ao ponto de as pôr em música, para mim tudo é fértil desde que me desperte interesse. Não é pela qualidade do texto, porque às vezes existem textos que têm imensa qualidade, eu posso lê-los e sentir que quero relacionar-me com aquele texto apenas numa perspetiva de leitor. E, outras vezes, encontramos textos que até podemos achar que têm menos qualidade mas que têm ali qualquer coisa que nos interessa muito pôr em música. Há um elemento de uma certa subjetividade nessa questão.

Quando escolhi a peça do libretista da ópera que fiz [Stephen Place – Paint Me], não foi por ele ser inglês ou por escrever inglês, foi porque andei a ler muitos textos de escritores de nacionalidades diferentes - incluindo o português - e houve uma pessoa minha amiga (uma amiga em comum) que me mostrou um libreto do Stephen. Depois contactei-o e pedi-lhe para ler mais dois ou três libretos que ele tivesse escrito. Todos eles eram muito diferentes em termos de temas e inclusivamente na forma. Encontrei uma enorme empatia com aquele escritor, na forma como ele escrevia para cena e depois deu-se o caso de ele ser inglês. Podia ser francês, ou espanhol, ou italiano ou português.

Para responder à pergunta sobre a minha relação com o TNSC em termos de projetos futuros. Posso dizer que, neste momento, para além do concerto de violoncelo que escrevi, o que eu tenho feito essencialmente (depois da escrita do concerto) é um trabalho de colaboração com o serviço educativo do Teatro. Nomeadamente com o projeto Víctor Cordon, um trabalho em estreita colaboração com o Rui Lopes Graça para a área da dança. Para aquilo que é a gestão daquele espaço - com o Patrick Dickie e com a Joana Carneiro ao nível da parte musical - tenho feito trabalho de compositor mentor de três compositoras da nova geração. Estivemos precisamente agora a acabar um projeto de contos narrados que vai estrear muito em breve e há também todo um trabalho de apoio que faço ao nível daquilo que é programação de música portuguesa mais recente.

Uma das minhas funções, que eu tenho tentado cumprir, é não só estimular, é intensificar a presença da música portuguesa na programação daquele organismo, nas suas várias vertentes, desde a música de câmara à música orquestral, etc.

Como conheço bem o trabalho de muitos colegas meus, regularmente envio propostas, portanto, existem obras que já foram programadas como consequência disso, outras que terão de ficar a aguardar novas oportunidades. Surgiu também a ideia de um festival que está em curso e para o qual tenho estado a contribuir, precisamente na parte da música portuguesa e da música contemporânea.

E também nessa parte de consultoria para a parte da música contemporânea portuguesa, estou a trabalhar num projeto para conseguirmos gravar com a OSP obras de compositores portugueses. Algumas das coisas que estão a acontecer, de uma forma mais silenciosa, estão ainda nos bastidores.

No que se refere à composição, neste momento, o que me ocupa é a escrita de uma peça orquestral para assinalar os 25 anos da Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), que terá a sua estreia em novembro de 2018.

 

DC - Há muito poucos concertos sinfónicos com música portuguesa, se formos contabilizar os concertos sinfónicos nas quatro maiores orquestras do país, vemos que há menos de dez concertos sinfónicos, portanto...

LT - Pois, é preciso ver que a OSP tem uma característica que nenhuma das outras tem: é uma orquestra que tem de servir a temporada lírica, que tem de servir a temporada da Companhia Nacional de Bailado (quando é necessário) e tem que ter a temporada sinfónica. Depois é aquilo que eu dizia, tem de fazer desde o Verdi, dos Beethoven, etc., aos vivos. E, dentro dos vivos, os portugueses e não só. E a quantidade de programação, até por questões financeiras, não é suficiente para fluir todas estas coisas que nós gostaríamos que acontecessem de uma forma mais regular e mais intensa.

O que eu posso dizer é que tanto da parte da maestrina Joana Carneiro, como do diretor artístico Patrick Dickie, existe um interesse genuíno pela música contemporânea portuguesa e uma vontade não só de a programar mais, como de a fixar, gravando-a em disco. Ao nível da programação, isso tem-se visto.

O exemplo da estreia da peça da Clotilde Rosa, no ano passado - que esperou 17 anos até ver a luz do dia -, o Nuno da Rocha, Ângela da Ponte, Manuel Durão... E de géneros diferentes, como a peça do Mário Laginha que escreveu para a abertura do Porto 2001, que foi feita no Festival Ao Largo. Outras, ainda, irão ser apresentadas agora na próxima temporada.

Portanto, acho que o panorama não é perfeito mas, apesar de tudo, acho que se estão a fazer coisas relevantes. Mesmo no contexto de se ter um compositor residente (obviamente há música minha que, como consequência, vai ser também ouvida nesse contexto da residência), é muito interessante que o Teatro tenha decidido que o compositor residente não beneficia só da estrutura, mas contribui também para a estrutura, estimulando as camadas mais jovens.

 

 

“não basta ensinar um aluno a pegar numa flauta e a tocar muito bem, é preciso ajudá-lo também a integrar-se no meio musical enquanto músico”

 

 

DC - Tem desenvolvido uma atividade notável também como professor na ESML. É natural o ensino na sua carreira? E o que procura transmitir aos seus alunos?

LT - Natural não sei. Comecei a dar aulas na ESML quando vim de Londres, depois de ter completado o mestrado. Na altura foi daquelas situações em que um colega ia deixar o corpo docente e fui convidado para preencher esse espaço. Aconteceu de uma forma imprevista, que eu não tinha planeado, e tive de superar alguns desafios difíceis.

Por exemplo, as aulas de turma, para mim, no começo, posso dizer que as dava com um certo sofrimento. Porque tinha muito receio de não estar ainda suficientemente preparado para o fazer e quando se está a falar com 20 ou 30 alunos, se alguma coisa corre mal, parece que o chão foge debaixo dos nossos pés.

Não foi uma coisa normal de eu dizer “quero dar aulas, quero ser professor”, não. Fui até um bocadinho atirado às feras sem estar à espera que isso acontecesse. Mas gosto do ensino e, por isso, é que também continuo ininterruptamente a dedicar-me ao ensino desde que comecei.

O que é que eu tento transmitir aos meus alunos? No caso das aulas de turma, obviamente é uma plateia mais anónima – ou, pelos menos, mais diversa. Nós não focamos aquilo que ensinamos para A ou B, é para um grupo de pessoas.

Nas aulas individuais, nomeadamente na cadeira de composição, estou a trabalhar com pessoas que vão ser meus colegas, têm o mesmo tipo de sonhos que eu tenho e que eu tive como eles os têm agora, quando eu tinha a idade deles. O que eu tento fazer é, para além daquilo que é o acompanhamento técnico, dar-lhes ferramentas para serem cada vez melhores compositores, ou mais preparados para o fazerem com qualidade.

E dar-lhes, também, um bocadinho de apoio a nível de orientação, do que é que podem fazer com esse conhecimento que vão adquirindo na escola. Um pouco como um músico intérprete; não basta ensinar um aluno a pegar numa flauta e a tocar muito bem, é preciso ajudá-lo também a integrar-se no meio musical enquanto músico, explicar-lhe como é que pode construir um pouco do seu percurso, para que aquilo que está a fazer não fique circunscrito ao contexto académico e que não sinta de uma forma tão desanimadora o confronto depois com a vida real, que é quando acaba a academia “e agora, o que é que eu vou fazer profissionalmente?”.

Tenho tentado sempre dar esse tipo de apoio aos meus alunos e ao mesmo tempo passar-lhes a mensagem de que eu tenho de os ajudar a compor a música que eles querem compor e não a música que eu acho que eles deveriam compor. Para esse problema, resolvo-o com a música que eu faço. Com os meus alunos, tenho de resolver o problema deles e tenho de sentir que no final do ano eles não estão a compor música como eu, a compor como se fossem uns clones, porque às vezes há esse perigo no ensino das áreas criativas, não é?!

 

 

“Através da rádio recebo gravações de coisas que estão a ser feitas agora, tomo conhecimento de obras de compositores de que nunca tinha ouvido falar”

 

 

DC - Além de compositor, professor, é conhecido pela sua exímia capacidade de comunicador. Fazer rádio surgiu também naturalmente? E o que o move nos seus programas na Antena2?

LT - Bom, à semelhança do ensino, a rádio também surgiu por acidente. Nunca me passou pela cabeça que fosse estar a fazer rádio, que ia estar a ler textos à frente do microfone.

Na altura, o meu colega Sérgio Azevedo tinha um programa na Antena 2 e quis fazer uma pausa; então, propôs o meu nome (na altura quem estava na direção na Antena 2 era o João Pereira Bastos).

Mais uma vez, eu tinha acabado de chegar de Inglaterra, estava meio desempregado - estava assim com uns empregos precários a dar aulas em escolas profissionais com seis e sete meses de atrasos de salários, aquela história típica que nós encontramos e que infelizmente se tem perpetuado - e pensei “porque não?”.

Então fui convidado a fazer uma proposta de um programa de rádio para a Antena 2, experimental, em que gravava seis episódios e, se corressem bem, podia continuar. Como estávamos em 2000, achei que era interessante fazer um programa em que fizéssemos uma digestão - uma reflexão - sobre o que tinha sido este século que tinha acabado e uma espécie de futurologia ou de antecipação sobre o que é que os artistas ou criadores musicais pensavam que poderia vir a ser este novo século.

Fiz primeiro seis entrevistas. Não me lembro exatamente de quem foram os seis primeiros entrevistados, mas penso que foram António Pinho Vargas, Eurico Carrapatoso, Christopher Bochmann, Bernardo Sassetti (estes quatro foram de certeza). Escolhi precisamente estas pessoas, por um lado porque achava que eles tinham capacidades de comunicação - que no caso de eu, enquanto entrevistador, falhar tinha ali uma rede que me ia ajudar.

Por outro lado, obviamente por achar que eram compositores que tinham coisas muito diferentes para dizer sobre aquele assunto; porque eram pessoas que tinham posições diferentes e eu queria que o programa gerasse reflexão sobre precisamente aquilo que estávamos a falar há pouco, nesta não existência de uma prática comum.

As pessoas tinham ideias muito diferentes sobre o que era fazer música, na altura no começo do século XXI. Compositores como o Eurico, que assumia claramente uma postura de herdeiro de muitas práticas do passado, com uma afirmação estética com essa herança. Por outro lado, uma atitude mais próxima do modernismo com Christopher Bochmann ou uma leitura mais direcional da evolução da história da música, de não se poder voltar para trás, porque há um sentido que é de trás para a frente e não de frente para trás.

Ou uma leitura talvez um pouco mais pós-moderna com António Pinho Vargas, até pela sua experiência em diferentes áreas e, no caso do Bernardo Sassetti, por ser para mim um paradigma de uma pessoa que era um compositor e um músico maravilhoso não inserido na tradição da música escrita.

Porque existe, por vezes, a ideia de que a música é maior se estiver no contexto de uma herança de determinado tipo de academia, uma legitimação feita através de se ter estudado contraponto e a teoria, etc. Pessoalmente considero isso um disparate e achava que uma pessoa como o Bernardo tinha todas as características de que era possível ter-se um conhecimento musical absolutamente extraordinário e invulgar, sem ter passado por esse percurso académico e tradicional. E por outro lado, como éramos muito amigos e conversávamos muito sobre música, sabia que ele era um verdadeiro apaixonado pela música de compositores que iam desde o Ravel, a Messiaen, a Lutoslawski.

E foi assim que eu comecei a fazer rádio. Fui entrevistando colegas, e aquele programa surpreendentemente acabou por se prolongar penso que por dois anos, onde o critério era convidar ou compositores ou intérpretes de música contemporânea e depois fazíamos sempre uma coisa, eu levava sempre um exemplo musical à minha escolha que confrontava com o convidado e pedia ao convidado que trouxesse também um exemplo musical da sua escolha, que tivesse alguma relação com aquilo que tinha sido a sua aprendizagem musical. Não necessariamente que trouxessem a gravação da obra da música erudita que considerassem ser a mais completa de todas, não. Qualquer coisa que tivesse marcado o seu percurso.

Por exemplo, o João Pedro Oliveira trouxe um tema dos Dire Straits e aquilo na Antena 2 (estamos a falar de 2000) acho que saiu um bocadinho do contexto habitual. De repente tínhamos convidados que falavam de Bach, de Gesualdo, de Dire Straits, jazz... E para mim foi também muito bom porque, ao entrevistar aquelas pessoas todas de contextos tão diferentes, nós acabamos por vezes por nos questionar e encontrar respostas muito interessantes a perguntas que trazemos connosco.

Portanto, para mim a rádio tem sido isso, tem sido um espaço onde tento comunicar com aquilo que faço mas ao mesmo tempo - numa perspetiva mais egoísta - é uma forma que eu tenho de me reciclar constantemente.

Através da rádio recebo gravações de coisas que estão a ser feitas agora, tomo conhecimento de obras de compositores de que nunca tinha ouvido falar, normalmente vou à tribuna internacional de compositores - que é um encontro de radialistas onde tenho acesso a gravações de obras escritas nos últimos cinco anos por compositores que vão desde a Austrália, ao Canadá, Hong Kong, Taiwan, França, Alemanha -, ou seja, essa diversidade geográfica e musical daquilo que é feito na música contemporânea hoje. Tento testemunhá-la e tento captá-la numa perspetiva que não seja eurocêntrica, de não mostrar apenas o que é a música contemporânea numa leitura europeia, feita a partir de Londres, Paris, Milão, Berlim...

 

 

“como são pessoas que estão a evoluir, que estão a tentar superar as barreiras ao ponto de virem a ser artistas, tento que o prémio seja também um espaço onde aconteçam outros eventos”

 

 

 

DC - Paralelamente a isto tudo é ainda director artístico do Prémio Jovens Músicos (PJM) há mais de 10 anos.

LT - Este ano é o 11º, sou desde 2007.

 

DC - O que mudou no Prémio depois da sua chegada? Sabemos que mudou muita coisa. Desde que é diretor do PJM, podemos apontar uma série de mudanças históricas, como a introdução de novas categorias, parcerias. Enfim, o que conseguiu mudar e o que gostaria ainda de mudar, no futuro?

LT - Em relação ao PJM, tenho de dizer uma coisa: de facto já atingi uma década, já vou no meu 11º ano e, portanto, proporcionalmente em relação àquilo que foi o Prémio, tenho sempre o cuidado de dizer que houve duas décadas de PJM antes de eu chegar. E, portanto, quando peguei no Prémio encontrei uma estrutura que já existia e que foi muito bem idealizada por quem esteve antes de mim. As opções da Profª Filomena Cardoso foram obviamente feitas em função daquilo que eram as necessidades do nosso contexto musical e do ensino da música em Portugal na altura.

Eu posso, agora, pôr a concurso acordeão, jazz, música antiga, cravo, harpa, tuba, canto, etc. porque a realidade musical é diferente e as necessidades de utilizar o prémio também para fazer crescer a nossa vida musical são diferentes. Nomeadamente, quando eu assumi a direção do PJM, o que era urgente?

Antes, as nossas orquestras precisavam urgentemente, por exemplo, de instrumentistas de cordas. Quando peguei no Prémio, senti que essa função já estava cumprida. Tinha havido um “boom” no nosso ensino, muito motivado até, por exemplo, pela vinda de muitos músicos de países de leste, com a Perestroika. Nós sabemos que o nosso ensino de música levou, a partir da década de 80, de facto, impulsos louváveis. Portanto, quando eu pego no Prémio em 2007, o contexto musical já está diferente e o que tenho tentado desde então é que o prémio acompanhe também aquilo que são essas diferenças.

Por exemplo, lembro-me que quando comecei a pôr pela primeira vez a hipótese de criarmos a categoria de canto, havia um bocado aquela ideia de “ah, não vale a pena fazer isso porque não temos jovens cantores em quantidade e qualidade suficiente”. Então vamos procurar, vamos ver se isso é verdade, vamos pôr o Prémio ao serviço desse estímulo, dessa procura.

Ou noutro sentido, coisas que, entretanto, passaram a existir. Os estudos de jazz em Portugal durante muitos anos só eram feitos no Hot Clube mas, aos poucos, começaram a ser integrados no ensino público. Penso inclusivamente que o primeiro conservatório a ter estudos de jazz ao nível oficial foi o Conservatório da Madeira e depois no continente na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE), depois na ESML, em Évora, etc. De repente, se já havia ensino da música jazz para jovens músicos intérpretes a nível superior, por que razão é que o Prémio não poderia ter também uma categoria para essa área?

Tudo vai evoluindo, como é óbvio. A música antiga está a crescer, cada vez existem mais pessoas a dedicar-se a essa área. O que eu vou tentando fazer é abrir categorias e fazendo experiências, mantendo obviamente, aquilo que é a espinha dorsal do prémio. Continuamos a ter a flauta, o violino, o clarinete, o violoncelo, o piano, como é óbvio. São instrumentos incontornáveis.

Por outro lado - agora falo a título mais individual -, é um prémio que tem obviamente uma função de serviço público, porque está associado a um canal de uma empresa pública e que tem essa obrigação de servir um propósito, que é público, a causa pública.

Para mim, que não sou propriamente um intérprete, nunca teria tido a capacidade de estudar um instrumento ao ponto de concorrer a um concurso de intérpretes, o que é verdadeiramente importante não é propriamente a parte da competição entre os jovens músicos. Até devo dizer que essa é sempre a parte com a qual eu tenho mais dificuldades de lidar enquanto diretor do Prémio, porque não nos vamos iludir: algumas pessoas são mais ambiciosas que outras e, por vezes, levam aquilo com um determinado tipo de agressividade com a qual eu não me identifico.

O que acho é que, como são pessoas que estão a evoluir, que estão a tentar superar as barreiras ao ponto de virem a ser artistas, tento que o prémio seja também um espaço onde aconteçam outros eventos que, a par daquilo que é a competição e o concurso propriamente dito, sirvam também para o enriquecimento não só de quem participa, mas também de quem acompanha o Prémio aos mais variados níveis.

Vou dar exemplos. Quando no Festival do PJM, há três anos, fizemos convites a projetos como a orquestra dos miúdos com necessidades especiais do Conservatório de Setúbal e do Festival de Setúbal, a Orquestra Geração, quando envolvemos debates sobre as carreiras dos músicos para eles poderem saber como é que podem ter um espaço profissional na sua vida, quando criamos toda uma série de eventos associados ao prémio.

Por exemplo, as encomendas de obras para serem tocadas pelos intérpretes, a criação também do concurso de composição para dar espaço aos jovens compositores para terem música estreada com a Orquestra Gulbenkian.

Tudo isso são coisas que fazem com que o Prémio, de repente, hoje em dia, seja quase um franchising. Temos aquela marca PJM, em torno da qual gravitam várias estruturas que, todas somadas, considero que são de facto um serviço público prestado pela RTP / Antena 2.

 

DC - Deixa de ser apenas um concurso e passa a ser um serviço mais abrangente...

LT - ...em que as pessoas sentem todas, mesmo nas orquestras que nós convidamos e os músicos seniores que convidamos para participar, etc. Todos eles têm a sensação que estão a contribuir para qualquer coisa que é muito humana e muito válida, que é uma causa nobre.

Portanto, tento reforçar um pouco essa dimensão desinteressada e com isso não cairmos naquela armadilha que é a de transformar um concurso num momento de show, de exibição de talentos, como quem está a mostrar os meninos num contexto quase circense e depois os familiares e os professores ficam muito satisfeitos com o que estão a ver. E a coisa esgota-se ali, num momento que poderá ter muito interesse nessa componente mais circense mas que, para aquilo que são as minhas preocupações, enquanto músico e enquanto pessoa que pode influir em alguma coisa, não é propriamente o meu território, o meu espaço de interesse.

 

 

“Guardo sempre um espaço na semana para a família”

 

 

DC - Finalmente chegamos à parte mais pessoal. Com tantas camisolas a vestir, tem ainda uma família para cuidar; como gere a sua agenda com a vida familiar, consegue ter tempo para tudo?

LT - Tenho. A questão familiar, na realidade, é uma vertente prioritária mesmo nas alturas em que eu estou mais desorganizado com tempo, porque as coisas se acumularam ou por eu sentir que não estou a conseguir dar resposta a tudo o que era necessário. Guardo sempre um espaço na semana para a família.

Parece um pouco caricato dizer isto assim mas houve, por exemplo, uma altura - principalmente quando os meus filhos eram mais pequenos - em que punha na minha cabeça que os sábados eram para eles; durante a semana eles estavam na escola, etc. mas quando chegava ao fim-de-semana, tivesse de escrever música ou tivesse de organizar isto ou aquilo, o sábado era para jogar à bola, ou ir à praia, ou fosse o que fosse. Não só porque eu preciso disso, mas porque acho que, se tudo correr bem, daqui a 20 anos ainda estou a compor. Já o tempo com os nossos filhos passa demasiado rápido. Há pouco quando referi que estava a compor o Round Time, lembro-me que o meu miúdo, nessa altura, era pequenito - tinha dois anos e agora vai fazer 18 -, e isto passou tudo muito rapidamente.

Na realidade, se há coisa que eu sacrifico mais nesta sobreposição de tarefas que tenho assumido, é precisamente a parte da composição - há pouco, quando disse que não escrevia muito... As pessoas, por vezes, têm ideia de que escrevo muito porque tenho tido estreias de peças para formações maiores e isso tem um certo peso. Mas como já referi, em 2017 fiz um concerto para violoncelo que na realidade comecei em 2016 e foi estreado no início de 2017. Portanto, não se pode dizer que eu tenha composto muita música em 2017.

 

 

“a melhor aula que qualquer aluno de composição pode ter é quando ouve a sua música tocada”

 

 

DC - Como vê a nova geração de compositores portugueses?

LT - Vejo muito bem. Tenho acompanhado de perto, desde que dou aulas na ESML, há 18 anos; tudo quanto são alunos lá formados, tenho acompanhado o percurso deles. Inevitavelmente, nem que seja nas semanas dos exames. Mas ao mesmo tempo vejo com muito interesse aquilo que vai saindo das outras instituições do ensino da composição em Portugal.

No caso do Porto, houve ainda um ano em que também dei aulas na ESMAE e que intensifiquei a minha aproximação àquilo que aquela escola estava a fazer na altura - e que continuou e intensificou. Há pouco disse que quando fiz o meu curso, durante o curso todo não tive uma única peça tocada. Felizmente, hoje em dia, a geração das pessoas que estão a fazer o curso de composição vivem uma realidade completamente diferente.

 

DC - Quanto mais não seja, porque o computador reproduz mais ou menos aquilo que está escrito…

LT - Isso também é verdade, mas eu já nem vou por aí. Isso, de facto, também na nossa altura não tínhamos o mesmo tipo de acesso aos computadores - não foi assim há tanto tempo, atenção. (risos) Isto evoluiu tudo muito rapidamente.

Mas eu tive oportunidades que não dependem da máquina, porque esse sempre foi um refúgio, uma solução, uma saída. Por exemplo, alguns compositores que chegaram inclusivamente a afirmar que a complexidade da música que escreviam, ao não ser compatível com aquilo que os músicos e os executantes estavam a fazer, então preferiam fechar-se no estúdio de gravação e investigar.

A máquina, seja por que razões for, é sempre uma alternativa. Mas agora eu digo, na relação convencional da escrita da partitura e depois ter o intérprete que a toca, seja o solista, um grupo de câmara ou até uma orquestra, comparando com o passado, é absolutamente incrível o que acontece hoje em dia, em termos de quantidade de oportunidades. Às vezes vejo alunos meus divididos porque não sabem para que concurso é que vão escrever uma peça, porque, de repente, têm dois, três, quatro concursos ao mesmo tempo e não sabem se hão de escrever para este ou para aquele.

Para além dos concursos, vão-se abrindo espaços através de câmaras municipais, ou das próprias escolas, ou de outras instituições, como a Casa da Música, a Fundação Gulbenkian, de redes como o ENOA, de projetos de Jovens Compositores Residentes, as próprias escolas intensificaram a prática de repertório dos alunos dos departamentos de composição...

Claro, poderia ser mais, mas já vai acontecendo bastante. Eu vejo, por exemplo, na ESML, desde a Semana da Composição, ao trabalho que as próprias orquestras e os coros fazem, em que regularmente programam peças dos alunos. Portanto, há todo um conjunto de oportunidades que têm contribuído para algo que é absolutamente essencial: a melhor aula que qualquer aluno de composição pode ter é quando ouve a sua música tocada e, nesse sentido, as gerações mais recentes têm tido regularmente esse espaço e aprendem imenso com isso.

Com o PJM, também tenho tentado, por um lado, estimular que haja uma cultura de abertura dos jovens intérpretes. Se vão ser músicos profissionais, também vai fazer parte da sua vida tocarem música viva, música do tempo em que eles vivem.

Mesmo que um intérprete depois decida que não quer tocar música do tempo em que vive e que só quer tocar música do passado, isso é legítimo, não o questiono.

Agora, faz parte da sua formação académica passar também pela experiência de ler música que respire o ar do seu tempo, independentemente do estilo. Até porque se depois quiser negar essa prática, nega com conhecimento de causa e não porque algum professor lhe disse que “isso não é bom para os teus dedos” ou “não é bom para os teus pulmões”.

Com o PJM - precisamente nos últimos anos - temos feito a encomenda de peças de concurso e eu já constato, com alguma alegria, que ao todo já estamos em cerca de 80 e tal jovens compositores a quem foram encomendadas peças. E vejo com muita alegria que - obviamente a qualidade da música que é escrita não é uniforme: umas são melhores que outras; umas têm mais qualidades, sejam elas técnicas, sejam de outra ordem, mas - existe muito maior rodagem. Existe muito mais essa possibilidade de se escrever e de se ouvir tocar.

E, consequentemente, estão a aparecer regularmente alunos vindo do Porto, Aveiro, Lisboa e Évora com música de uma grande qualidade e que me faz prever que, se tudo continuar assim (não vejo razão para que isso não aconteça), a música portuguesa vai estar de boa saúde ao nível da composição por mais algumas décadas.

 

 

“uma das coisas pelas quais tenho batalhado bastante é conseguir que a música que vou fazendo vá ficando fixada de alguma forma”

 

 

DC - E, finalmente, por falar em mais umas décadas, o que podemos esperar de Luís Tinoco na próxima década?

LT - Não sei, nunca pensei nas coisas a distâncias tão largas como dez anos. Normalmente penso a 10 meses, na melhor das hipóteses. E aquilo que tenho reparado, naquilo que tem sido o meu percurso, é que acabo por chegar às coisas um bocadinho por passos, de vencer um determinado tipo de desafio e depois de sentir que isso aconteceu, então, dar o passo seguinte.

Tenho um disco que vai sair agora. Cá está, eu falo sempre de projetos a curto prazo. Tenho realmente a peça para saxofone e orquestra de sopros para o Alberto Roque, a outra peça de orquestra para a OSP, em novembro deste ano, e em maio/junho sairá o disco.

Isto é uma das coisas pelas quais tenho batalhado bastante, de conseguir que a música que vou fazendo vá ficando fixada de alguma forma, não só do ponto de vista editorial e de partitura, mas também com registo fonográfico.

 

DC - Falou num disco que vai sair em breve. O que é que podemos já saber dessa gravação?

LT - Neste momento acho que já posso abrir o jogo todo porque o disco está feito, está fechado, tanto do ponto de vista das gravações, como a parte gráfica. Está pronto a ir para a fábrica e, ao contrário do outro CD orquestral que fiz antes com a orquestra Gulbenkian, que foi todo gravado de raiz em sessões de estúdio com a OG, este é um disco com quatro peças orquestrais todas gravadas ao vivo.

Nos últimos dois, três anos, com o objetivo de pôr mais um disco cá fora, comecei a pedir autorização às orquestras para ir fazendo boas gravações de algumas das peças que foram sendo tocadas, já com o intuito de, depois, compilar essas gravações num disco. Este tem a característica invulgar de ser um CD com quatro peças orquestrais, todas tocadas por orquestras diferentes. Normalmente fazemos isso com a mesma orquestra ou com duas orquestras, mas neste são quatro.

Mas é por uma questão das circunstâncias, de terem sido orquestras que tocaram peças minhas, que as tocaram muito bem e que foram muito bem gravadas - porque a gravação ao vivo tem esse risco, se alguma coisa corre mal, ou se não é bem gravada, ou se acontece um acidente durante a performance e não há takes de ensaios para emendar, fica inutilizada para ser posta em CD.

Neste caso, foram quatro gravações felizes que eu consegui juntar, com as nossas três principais orquestras portuguesas - Casa da Música, Sinfónica Portuguesa e Gulbenkian - e uma orquestra norte-americana, a Orquestra Sinfónica de Seattle, com quatro maestros diferentes. É também um disco que inclui a primeira peça que fiz no contexto de compositor residente do TNSC, o concerto de violoncelo com o Filipe Quaresma.

Estou bastante entusiasmado pelo facto de ter mais este objeto, para poder começar a concentrar-me no próximo que, já agora posso dizer, vai acontecer para o ano que vem.

Outro projecto discográfico, que coincide com os 20 anos do Grupo de Percussão Drumming, em 2019. Este é um agrupamento de referência em Portugal, que mudou o panorama da percussão no país, com o trabalho que o Miquel Bernart e todos os seus alunos e músicos do Drumming foram fazendo. Trabalhei com eles nos últimos anos em várias circunstâncias, escrevendo peças umas vezes para eles, outras com outras formações de percussão e solistas. E estamos a reunir essas peças de percussão, desde solos a ensemble, a formações mistas com percussão que eu fiz, para gravarmos ainda em 2018 e para fazer esse disco sair em 2019, que coincide também com os meus 50 anos. Portanto, vai ser um disco monográfico, que fatalmente assinala duas datas: uma que eu gosto menos de falar do que a outra. (risos)

 

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