City Walk: Nuno Aroso plays João Pedro Oliveira

“o verdadeiro desafio reside, de facto, no mergulho nas idiossincrasias de cada compositor”.

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Sandra Bastos

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“City Walk: Nuno Aroso plays João Pedro Oliveira” é o primeiro lançamento da AnTaural, nova etiqueta discográfica- O álbum assinala não apenas o nascimento de uma editora, mas também uma colaboração artística de longa duração entre o percussionista Nuno Aroso e o compositor João Pedro Oliveira, duas figuras centrais da criação musical contemporânea portuguesa.

 

 

“Um disco é uma peça artística que deve funcionar como um todo narrativo”

 

O disco reúne obras escritas ao longo de cerca de uma década e constitui um testemunho significativo da forma como João Pedro Oliveira tem pensado a escrita para percussão e determinados intérpretes. “Um disco é, antes de mais, uma peça artística que deve funcionar como um todo narrativo. No caso do João Pedro Oliveira talvez pela diversidade das formações e da instrumentação e pela coerência dos discursos, foi possível construir esse objeto musical coeso — de narrativa completa — que, ao mesmo tempo, documenta uma década de colaboração”, explica Nuno Aroso.

 

A obra que dá título ao álbum, City Walk, foi encomendada pela Arte no Tempo para o primeiro espetáculo da trilogia criada por Nuno Aroso e o ator João Reis, iniciada em 2021. Essa peça funciona como eixo conceptual do disco, ao articular gesto instrumental, espacialidade e dramaturgia sonora — elementos recorrentes na colaboração entre compositor e intérprete.

 

 

Uma colaboração “cada vez mais sólida e frutífera”

 

A colaboração entre Nuno Aroso e João Pedro Oliveira atravessa várias décadas, não obstante João Pedro Oliveira pertencer a uma geração anterior e ser já uma figura de referência na composição quando Nuno Aroso ainda era estudante. O primeiro contacto foi, por isso, enquanto ouvinte: “Lembro-me de, em 1994, ter ouvido no CCB o seu Requiem, uma experiência que provocou em mim uma verdadeira revolução interior”.

 

A colaboração compositor-intérprete surgiu mais tarde, quando o percussionista estreou uma obra do compositor em 2000 e, depois, em 2003, com peças para ensemble de percussão. Esses primeiros encontros abriram caminho para uma relação artística mais próxima, que se consolidaria em 2011 com Vox Sum Vitae, para vibrafone e eletrónica — uma encomenda do Atelier de Composição e da Oficina Musical, que Aroso estreou em Florença, no mesmo ano e é a peça mais antiga do disco.

 

A partir daí, novas obras foram sendo escritas com o intérprete diretamente envolvido no processo criativo, com uma única exceção: a peça que abre o disco, interpretada por convite na sua estreia. Ao longo do tempo, essa colaboração foi-se tornando “cada vez mais sólida e frutífera, dando origem a várias peças que nasceram da vontade conjunta de compositor e intérprete”.

 

 

“João Pedro Oliveira possui uma identidade musical muito forte e coerente”

 

Para Nuno Aroso, a escrita de João Pedro Oliveira para percussão distingue-se, antes de mais, pelo “domínio notável dos meios instrumentais da percussão, não só dos instrumentos mais convencionais como também dos que resultam de invenção ou experimentação. Isso é algo pouco comum”.

 

Porém, o seu virtuosismo técnico não se sobrepõe à identidade artística: “possui uma identidade musical muito forte e coerente. Ao contrário do que por vezes acontece quando um compositor escreve para percussão, essa identidade não se dilui no vasto leque de recursos instrumentais disponíveis, nem se deixa deslumbrar pelos meios. É uma música de grande rigor e integridade artística”.

 

 

City Walk “permite ao músico participar ativamente no percurso da obra”

 

Na interpretação das obras reunidas em City Walk, Nuno Aroso sublinha a dimensão de envolvimento criativo exigida ao intérprete. Entre as peças do disco, destaca-se naturalmente a obra homónima, a mais recente e a única concebida para solista. City Walk apresenta uma particularidade rara: a possibilidade de o músico escolher livremente os instrumentos a utilizar, desde que sejam construídos em metal.

 

“Essa liberdade é extremamente valiosa, porque permite ao músico participar ativamente no percurso da obra, tornando cada apresentação potencialmente única”, destaca. A própria escolha dos instrumentos terá um papel decisivo no carácter da peça: “Mesmo mantendo-se o texto musical inalterado, a opção por sons mais ressonantes ou mais secos, mais agudos ou mais graves, mais ricos ou mais austeros no espectro harmónico, transforma a narrativa e molda a percepção emocional do discurso musical”.

 

 

“Carlos Lopes conhece profundamente as especificidades da percussão e da música contemporânea”

 

O processo de gravação trouxe, por sua vez, obstáculos específicos associados à própria natureza da percussão, que possui “características acústicas e organológicas que nem sempre são fáceis de controlar”.

 

O maior desafio foi “encontrar a melhor forma de captar a complexidade e a riqueza do conjunto sonoro produzido”. Nesse contexto, foi fundamental o papel determinante da equipa técnica e, em especial, de Carlos Lopes, responsável por todas as etapas do processo, da captação à mistura e masterização. Para além de um domínio técnico sólido, “Carlos Lopes é um ouvinte de grande sensibilidade e conhece profundamente as especificidades da percussão e da música contemporânea”.

 

 

“a missão de oferecer a jovens músicos talentosos um espaço onde possam crescer e afirmar-se profissionalmente”

 

O álbum City Walk funciona também como um laboratório artístico e pedagógico para o Clamat – colectivo variável, com a participação, neste projeto, de Bernardo Cruz, Henrique Ramos, João Pedro Lourenço e Vitória do Bem.

 

Para Nuno Aroso, o Clamat além de ser um espaço de experimentação e criação, é também uma plataforma de afirmação para jovens músicos: “O colectivo nasceu com um propósito criativo, mas também com a missão de oferecer a jovens músicos talentosos um espaço onde possam crescer e afirmar-se profissionalmente. Nesta fase do meu percurso, considero fundamental poder contribuir desta forma”.

 

 

“o verdadeiro desafio reside, de facto, no mergulho nas idiossincrasias de cada compositor”

 

Esta aposta em jovens intérpretes coloca, naturalmente, desafios específicos. Embora a percussão tenha afirmado a sua independência artística no contexto das revoluções musicais do século XX — estando, por isso, intrinsecamente ligada ao pensamento contemporâneo – “o verdadeiro desafio reside, de facto, no mergulho nas idiossincrasias de cada compositor”.

 

No caso das obras de João Pedro Oliveira, as exigências são particularmente elevadas, tanto do ponto de vista artístico como técnico e mecânico: “É fundamental que o músico tome decisões precisas na criação das relações de timbre e ritmo, dinâmica e registo, assim como na integração da matéria acústica com a electrónica, quando presente”.

 

Para quem escuta estas obras pela primeira vez, Nuno Aroso deixa um convite: “poderá ser bom partir-se para este disco como quem parte para uma viagem não demasiadamente programada. Permitir-se, o ouvinte-viajante, ter encontros com o inesperado e aceitá-los como parte enriquecedora do caminho, como parte do prazer da viagem.”

 

 

“Há compositores maravilhosos em Portugal”

 

Ao expor modos de compor e interpretar enraizados em Portugal, City Walk levanta também a questão de uma possível identidade portuguesa na música contemporânea. “Procuro valorizar a música escrita por compositores portugueses e tento que ela esteja sempre presente nos meus programas. Há compositores maravilhosos em Portugal. E, sim, penso que será inevitável sermos influenciados pelo nosso entorno”, afirma Aroso.

 

Reconhece, contudo, que a ideia de uma “identidade portuguesa” enquanto experiência estética consolidada levanta dúvidas: “Talvez precisemos de mais tempo, de mais distância, mais produção, para podermos vir a reconhecer traços que permitam aceitar a existência de uma “música portuguesa”.”

 

 

“A Arte no Tempo representa o que de melhor se faz pela música contemporânea em Portugal”

 

Quanto ao futuro, o percussionista aponta vários eixos de trabalho. O Clamat – colectivo variável continuará a ser uma prioridade, a par da atividade pedagógica na Universidade de Aveiro, onde leciona exclusivamente. Em paralelo, tem vindo a retomar os seus projetos de criação a solo e em colaboração com outros artistas, depois de um período de abrandamento que descreve como necessário.

 

A Arte no Tempo mantém um lugar central no seu percurso: “A Arte no Tempo representa, a meu ver, o que de melhor se faz pela música contemporânea em Portugal, e tem ocupado um lugar muito importante na minha vida nos últimos anos”. Um dos projetos em desenvolvimento é o podcast Vortex Temporum e a trilogia desenvolvida com o ator João Reis. Mas há mais em preparação: ”Há também, pelo menos, mais duas gravações a serem pensadas para a mesma editora — AnTaural —, uma delas reunindo o Clamat – colectivo variável e o Ars ad Hoc”.

 

 

“nunca renunciei àquilo que hoje, de forma descomplexada, posso chamar de desejo”

 

Com mais de 150 obras estreadas, o que o mantém na linha da frente da criação contemporânea é, de forma lapidar, “a curiosidade” e “cumprir a interrogação, apenas e só”.

 

A construção da sua identidade enquanto intérprete surge, no seu entender, ligada a uma fidelidade constante ao desejo: “nunca renunciei àquilo que hoje, de forma descomplexada, posso chamar de desejo”.

 

“São o que nós somos: as pessoas, os lugares, os poemas, as danças, ou os filmes que despertaram em nós esses desejos que procuramos ver artisticamente cumpridos. A identidade será isso”, sublinha.

 

 

“pôr a percussão em diálogo com outras disciplinas é decisivo para afirmar plenamente o seu lugar na arte”

 

A forte dimensão multidisciplinar da sua carreira — cruzando percussão com dança, cinema, teatro ou literatura — influencia de forma total a sua maneira de estar na música. “Para mim, pôr a percussão em diálogo com outras disciplinas é decisivo para afirmar plenamente o seu lugar na arte. E isso torna-se, naturalmente, uma posição sobre a minha própria maneira de estar na música”, afirma.

 

Confessa aprender muito sobre “os caminhos que a música e a percussão contemporânea podem percorrer, no diálogo com outros artistas, sejam eles actores, bailarinos ou outros criadores”: “Isto não tem a ver com a prática da percussão enquanto especialidade ou domínio instrumental, isso é outra coisa. Trata-se mais de uma dimensão que surge do propósito, do “para quê?” da criação artística”.

 

 

“Um artista não deve tocar por compulsão, banalizando-se a si e à música”

 

Enquanto professor no ensino superior e formador em masterclasses internacionais, sublinha a centralidade da técnica — não negociável — como base para qualquer pensamento musical consequente: “Sem um sólido conhecimento da mecânica, da técnica, e sem uma capacidade para se produzir o som desejado ou imaginado, não é possível pensar bem a música”.

 

Estando a técnica assegurada, os músicos não podem esquecer que são artistas: “Um artista não deve tocar por compulsão, banalizando-se a si e à música. Deve tocar como último ato, como um gesto que surge de uma mistura refinada de reflexão e paixão. Quando digo “tocar”, neste contexto, falo num sentido alargado, que engloba a criação e a concepção do concerto, a definição de uma ideia de arte que permita revelar progressivamente a identidade”.

 

 

“Na percussão, o mecanismo que produz o som é, na totalidade, o corpo do músico”

 

Essa consciência estende-se ao papel do gesto, tema central da sua tese de doutoramento, The Gesture’s Narrative. “Na percussão, dada a natureza dos instrumentos — alguns bastante rudimentares, sem grandes artifícios tecnológicos — o mecanismo que produz o som é, na totalidade, o corpo do músico”, explica.

 

Em consequência, o movimento utilizado para gerar o som define, “em grande medida, o carácter musical e a qualidade sonora que se produz”. Para além disso, há dimensões perceptivas que o intérprete pode potenciar através da sua coreografia, “desde a dinâmica até à duração da ressonância, por exemplo”.

 

“A boa regulação do gesto, sem procurar sobreinterpretações coreográficas, pode moldar completamente a experiência do ouvinte perante uma obra musical. Um músico consciente do seu gesto produtor de som, consegue orientar de forma muito significativa os caminhos de percepção da audiência”, acrescenta.

 

Quanto ao que ainda gostaria de explorar, a resposta mantém-se aberta e coerente com todo o percurso: “explorar o futuro, precisamente”.

 

 

https://www.limina.pt/nunoaroso

 

https://www.jpoliveira.com/

 

https://artenotempo.pt/clamat-colectivo-variavel/

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