Em Orquestra - Daniel Canas

“não podemos dar nada por garantido, ou cair na tentação de relaxar no estudo e no compromisso”

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Sandra Bastos

  • Daniel Canas
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Trompista da Orquestra Metropolitana de Lisboa, Daniel Canas é um exemplo de dedicação, disciplina e paixão pela música. Nesta entrevista, fala-nos abertamente sobre os desafios de ser músico de orquestra, a importância do trabalho em equipa, o papel determinante dos seus mestres, e o equilíbrio (nem sempre fácil) entre a vida pessoal e profissional. Um testemunho inspirador que atravessa a paixão pela trompa, o poder da música de câmara, a versatilidade do instrumento e o impacto transformador da educação musical.

 

 

os maiores desafios de ser trompista numa orquestra

 

“o maior desafio, para mim, é por vezes encontrar um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal”

 

Atleta federado desde os 12 anos de idade – jogou voleibol em vários clubes da 1ª Divisão e chegou a integrar as seleções nacionais jovens, Daniel Canas encontra facilmente semelhanças entre estes dois mundos (alta competição e música), como a necessidade de estar sempre na nossa melhor forma física e mental.

 

“Diria que o maior desafio, para mim, é por vezes encontrar um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, e acredito que neste campo ajuda bastante estar rodeado de pessoas certas. Pessoalmente falando, tenho sorte de ter o apoio incondicional da minha esposa Rita, que me ajuda bastante neste aspeto”, diz.

 

 

o dia a dia de um músico numa orquestra

 

“É verdadeiramente recompensador quando temos um plano e o conseguimos cumprir na sua plenitude”

 

Continuando o paralelismo com o desporto de alta competição, para Daniel “um músico acaba por ter momentos de estudo/treino individual, para depois se juntar aos colegas e verdadeiramente trabalhar as obras em conjunto”.

 

“São momentos um pouco solitários inicialmente, mas sempre com vista no objetivo final - a performance. É verdadeiramente recompensador quando temos um plano e o conseguimos cumprir na sua plenitude”, acrescenta.

 

 

preparação física e mental

 

“Um erro será só um erro”

 

 “Tal como fui ensinado, tento fazer uma preparação exaustiva das obras que sei que vão exigir muito de mim, fisicamente e mentalmente. Por vezes dou por mim a estudar obras que só se tocam passados dois ou três meses”, explica. O domínio do instrumento depende necessariamente de “uma rotina de estudo regular e progressiva”: “Contudo, todas as semanas de trabalho requerem uma atenção e empenho diferenciado, de modo a evitar surpresas nos dias dos ensaios.”

 

“Do ponto vista mental, acho importante termos em mente que somos músicos, “somente” músicos. Um erro será só um erro. Não somos robots nem mesmo cirurgiões, que em cada operação têm nas suas mãos a vida de alguém. Por isto mesmo, um erro será só um erro. É necessário aprender a lidar e arranjar ferramentas para evitar ou prevenir que se repita”, afirma.

 

 

 

papel da trompa numa orquestra

 

 “um dos instrumentos de sopro mais difíceis de dominar tecnicamente”

 

“A trompa, juntamente com o oboé, é considerada por muitos como um dos instrumentos de sopro mais difíceis de dominar tecnicamente”, explica.

 

“Em orquestra, tem um papel central e características únicas, como ter a capacidade de se conectar facilmente tanto com os sopros, como com as cordas”, por isso, “vários compositores aproveitaram esta habilidade única da trompa, e naturalmente, é um dos instrumentos com maior destaque numa orquestra”.

 

 

obras em que a trompa tem um papel gratificante

 

 “valorizo muito o legado que W. A. Mozart, J. Haydn e vários outros compositores clássicos”

 

“Tocar obras de compositores como R. Strauss, G. Mahler ou R. Schumann fazem com que nos apaixonemos por este instrumento e com esta vida diariamente, mas eu, estando de momento numa orquestra de carácter mais camerístico, valorizo muito o legado que W. A. Mozart, J. Haydn e vários outros compositores clássicos nos deixaram em termos de repertório, onde a trompa também desempenha um papel chave”, sublinha.

 

 

qualidades essenciais para um músico sobreviver e crescer numa orquestra

 

“se alguém sente que está a “sobreviver” neste meio, é porque está na profissão errada”

 

Para um músico sobreviver e crescer numa orquestra, deve “ser ambicioso, determinado e ter um espírito autocrítico”.  O lugar de trompa solista “tem naturalmente mais exposição”, mas “é importante ser-se “fearless” e confiar nas nossas capacidades individuais”.

 

Defende que “há pessoas que nascem com um dom natural para subir ao palco ou serem o foco das atenções, e há outras que demoram um pouco mais a atingir esse conforto”.

 

Na sua opinião, “se alguém sente que está a “sobreviver” neste meio, é porque está na profissão errada”: “Não é um mundo fácil, mas tampouco deve obrigar alguém a viver em modo de sobrevivência. A música é das artes mais nobres que existe e devemos desfrutar dela todos os dias da nossa profissão.”

 

 

a comunicação dentro do naipe

 

 “Um bom ambiente, de cooperação e entrega, faz com que o “produto final” tenha mais qualidade”

 

O trabalho no naipe “deve funcionar como uma equipa, onde todos trabalham e rumam no mesmo sentido”.

 

“Um bom ambiente, de cooperação e entrega, faz com que o “produto final” tenha mais qualidade e haja um verdadeiro envolvimento por parte de todos os membros do naipe”, destaca.

  

 

momentos de frustração ou dificuldades na profissão

 

 “não podemos dar nada por garantido, ou cair na tentação de relaxar no estudo e no compromisso”

 

“Os momentos de frustração fazem parte da nossa profissão. Ficar zangado ou um pouco frustrado com uma performance menos conseguida é sinal de que nos importamos de verdade”, reconhece.

 

No entanto, é fundamental ter consciência de que um dia não são dias: “no concerto seguinte temos uma nova oportunidade para “contar a nossa história” e fazer o que temos planeado, é uma linha de pensamento pela qual me tento guiar.”

 

“Se há uma coisa que aprendi nestes anos que estou em orquestra, é que não podemos dar nada por garantido, ou cair na tentação de relaxar no estudo e no compromisso”, sublinha.

 

 

mudanças no meio orquestral português

 

“Tem de haver sempre espaço para inovar, crescer, melhorar. Só assim conseguimos inverter ciclos de estagnação artística”

 

Considera que a criação de várias orquestras jovens e semiprofissionais e permite aos estudantes “ter mais oportunidades para entrar no mercado de trabalho e ganhar experiência”, “uma mais-valia imensurável”, porém e apenas “quando são devidamente remunerados pelo seu estudo e trabalho”. Quando isso não acontece, “é pura e meramente exploração”.

 

“Tem de haver sempre espaço para inovar, crescer, melhorar. Só assim conseguimos inverter ciclos de estagnação artística”, defende.

 

 

conselhos aos jovens músicos que sonham tocar numa orquestra

 

 “sede insaciável de querer aprender mais e mais todos os dias”

 

“Estudem o máximo que conseguirem, criando objetivos a curto e longo prazo. Mantenham uma atitude ambiciosa, aliada a muita humildade e uma sede insaciável de querer aprender mais e mais todos os dias!”, aconselha aos mais jovens.

 

 

Se tivesses de descrever, em poucas palavras, o que mais o emociona em tocar numa orquestra, o que diria?

 “O que mais me emociona quando toco em orquestra é saber que o ouvinte, que a maior parte das vezes paga para nos ouvir, está a escutar um som, um conceito, e não um ou outro solista ou secção em particular. Tocar em orquestra deve ser um trabalho coletivo com um objetivo final comum, porque quando esta simbiose acontece, a mensagem inerente à música passa muito mais facilmente. Não há nada mais gratificante que sentir que tantas dezenas de pessoas estão num palco com um objetivo comum. O funcionar de “uma orquestra como um todo”, para mim é algo incrível de se testemunhar.”

 

 

 A descoberta da Trompa

 

 Com o irmão, na Banda Filarmónica da Mamarrosa

 

Como a maioria dos músicos de sopro em Portugal, Daniel Canas iniciou os seus estudos musicais numa banda filarmónica – a Banda Filarmónica da Mamarrosa - quando tinha 5 anos de idade, na classe de solfejo. “Na altura não havia muitos trompistas, mas na verdade o que me fez seguir a trompa, aos 8 anos, foi o facto de o meu irmão também tocar o instrumento e eu querer ficar o mais próximo dele”, sublinha.

 

“Considero que o trabalho que se faz nestas instituições é de uma mais-valia enorme e deve ser preservado e apoiado com todos os meios possíveis. De certa forma, em última análise, gosto de pensar que foi uma escolha acertada de instrumento!”, acrescenta.

 

 

Os professores José Bernardo Silva, Bohdan Sebestik e Abel Pereira

 

 O lema «Difícil no campo de treino. Fácil no campo de batalha!»

 

Ao longo do seu percurso teve vários professores que o ajudaram a construir e a moldar não só a sua identidade musical, mas também a sua personalidade, mostrando-lhe sempre “qual o melhor caminho para o sucesso”. Destaca o professor José Bernardo Silva, por “desde cedo” lhe “mostrar que sem compromisso e entrega total ao instrumento, dificilmente teria resultados sérios”.

 

Também o professor Bohdan Sebestik – o pai da trompa em Portugal – teve um papel crucial na sua formação: “é uma pessoa que guardo com grande carinho e estima por toda a dedicação que tinha pela sua classe e pelos seus alunos”.

 

“Foi com ele que aprendi que temos de estar preparados a 200% para conseguir almejar sempre uma performance notável. Na ESMAE era costume ouvirmos – «Difícil no campo de treino. Fácil no campo de batalha!»”, sublinha.

 

Por último, mas não menos importante, o professor Abel Pereira, “que dispensa apresentações, mas que foi, é, e será sempre uma referência por várias gerações para os trompistas portugueses”: “Cada aula, cada momento era como se estivéssemos a assistir a verdadeiras masterclasses.”

 

Atualmente, como docente na ANSO (Academia Nacional Superior de Orquestra), quer passar o testemunho aos mais novos: “tento transportar muitos dos ensinamentos que estes e outros professores me deram para os meus alunos, convicto de que assim estarão um pouco mais perto do sucesso”.

 

 

De Plácido Domingo aos Azeitonas

 

“a versatilidade da trompa”

 

Ao longo da sua ainda curta carreira, Daniel Canas tem tido “a sorte” de tocar com grandes solistas e grandes maestros de renome internacional: “alguns deles, achamos que nem são verdadeiramente “humanos”, tal o seu nível e espetacularidade com que se apresentam”.

 

“No México, estreámos uma sala nova com cerca de 1700 lugares, onde o tenor e maestro Plácido Domingo foi uma figura fulcral para a sua construção. De certa forma, poder privar com uma figura deste calibre foi como que a continuação do sonho que referi anteriormente”, conta.

 

Quando estudava na ESMAE teve outro tipo de experiência, quando gravou com os Azeitonas: “Lembro-me como se fosse hoje de um membro dos Azeitonas, e responsável pelos arranjos musicais, dizer que não tinha noção que um quarteto de trompas podia soar de tal forma, fundindo tão bem em estilo, linguagem e carácter com aquilo que consideramos ser música mais pop. Isto só demonstra mais uma vez a versatilidade que a trompa tem, podendo-se anexar facilmente a vários ensembles de géneros distintos. Faziam também parte deste quarteto o Duarte Moreira, o Pedro Henriques e o André Maximino”.

 

 

digressões inesquecíveis com a Orquestra Filarmónica de Jalisco

 

Guarda igualmente “grandes e boas memórias” da temporada em que esteve na Orquestra Filarmónica de Jalisco, no México: “foi onde comecei a minha carreira orquestral, e fiz amigos que levo para a vida”.

 

“As duas tours onde tive o privilégio de participar com a Orquestra Filarmónica de Jalisco pela Alemanha/Áustria e EUA foram um marco importante para mim, quer a nível artístico quer a nível pessoal”, conta. Foi a realização de um sonho que nunca pensou ser possível atingir tão cedo na sua carreira -  “tocar em salas emblemáticas como a Konzerthaus Berlin, Gasteig Munich, Konzerthaus Vienna ou San Francisco Symphony”.

 

 

Oporto Horn Quartet e a Música de Câmara

 

“um verdadeiro defensor da música de câmara”

 

É membro fundador do Oporto Horn Quartet e de outros projetos de câmara. Assume-se como “um verdadeiro defensor da música de câmara” e defende-a como fundamental para um bom trabalho dos músicos em orquestra.

 

“Na Metropolitana, temos a vantagem de ter uma programação que nos permite trabalhar em ensemble várias vezes durante o ano. A transposição do trabalho que fazemos, como quinteto de sopros ou outras formações do género, para a orquestra propriamente dita é abismal e, na minha opinião, molda o som e conceito final do agrupamento”, afirma.

 

 

O futuro

 

“O contributo do estudo da trompa natural no desenvolvimento do trompista moderno”

 

Para o futuro, Daniel Canas deseja desenvolver as suas capacidades “a outro nível na trompa natural”.  Conta que foram vários os momentos em que tocou trompa natural na Orquestra Metropolitana de Lisboa, de modo a “fazer uma performance historicamente informada e mais de  acordo com o que o compositor pretendia no momento da escrita da obra”.

 

Também a sua tese de mestrado foi dedicada à trompa natural - O contributo do estudo da trompa natural no desenvolvimento do trompista moderno. Acho fulcral sermos capazes de dominar um instrumento tão diferente como é o caso da trompa natural, e considero que só trará vantagens ao trompista moderno”, explica.

 

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