Sandra Bastos
Chefe de naipe dos segundos violinos da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, desde 2017, Ana Madalena Ribeiro assume o seu papel como um piloto de avião, garantindo que toda a tripulação viaje em segurança, no andamento certo e com o mesmo destino. Na orquestra, mais do que tocar, ela conduz um diálogo constante entre músicos, maestro e repertório, onde o desafio diário é transformar múltiplas vozes em uma só linguagem musical. Nesta entrevista, partilha também a sua visão sobre a inovação, a importância do ambiente humano na criação artística e os valores que sustentam a sua carreira.
Uma experiência “intensa, exigente e muito gratificante"
Ana Madalena Ribeiro é chefe de naipe dos segundos violinos da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, desde 2017, uma experiência que define como “intensa, exigente e muito gratificante".
“Estar numa orquestra como a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música é, por si só, uma enorme responsabilidade, pela qualidade do grupo, pela programação ambiciosa e pela exposição constante. Assumir a liderança de um naipe dentro dessa estrutura é ainda mais desafiante”, explica.
“ser chefe de naipe é um equilíbrio entre liderança, técnica e muita inteligência emocional”
Liderar um naipe implica uma disponibilidade a todos os níveis: “É garantir fusão e comunicação claras, é ser a ponte entre o maestro e os colegas e saber quando liderar ou quando simplesmente servir a música. Exige atenção ao detalhe, resiliência, empatia e muita presença”.
“É como ser piloto de um avião”, diz. “Não é só tocar bem, é garantir que toda a tripulação vai levantar voo em segurança, no andamento certo e com o mesmo destino. Se algo sai fora da rota, é responsabilidade do chefe de naipe corrigir com firmeza, mas sem turbulência!”, sublinha.
É também preciso “conhecer o repertório como a palma da mão, perceber as intenções do maestro e conseguir transmitir tudo isso com clareza”. E ser um mediador: “lida com egos, tem de manter o clima positivo e, muitas vezes, tem de resolver conflitos”. Ou seja, um é conseguir “um equilíbrio entre liderança, técnica e muita inteligência emocional”.
“Quando há cumplicidade, confiança e espaço para o outro, a música simplesmente flui”
Para Ana Madalena Ribeiro, a verdadeira linguagem de um naipe é a humana: “respeito, atenção e empatia”. Naturalmente, há momentos de confusão, como em qualquer grupo: “Somos muitos, com personalidades diferentes, experiências diversas e formas distintas de pensar e interpretar. Mas o que me interessa é criar um ambiente onde todos se sintam ouvidos e valorizados”.
A comunicação de um naipe não pode envolver “gritar ordens nem impor uma visão”: “É ouvir, ajustar, cuidar — e, sim, às vezes também decidir. Acredito profundamente no poder do coletivo e no impacto que um ambiente saudável tem no som e na qualidade artística que produzimos”.
“Quando há cumplicidade, confiança e espaço para o outro, a música simplesmente flui. E isso é uma das experiências mais bonitas de se viver numa orquestra”, acrescenta.
“O mais difícil é manter o foco e a energia ao longo de semanas muito exigentes”
O dia a dia numa orquestra é exigente: “Temos ensaios intensivos, preparação constante e muita responsabilidade individual e coletiva. Não se pode chegar a um ensaio (muito menos a um concerto), sem muito trabalho invisível - estudo individual, atenção aos pormenores, coordenação com os colegas e disponibilidade mental para o tudo”.
“O mais difícil é manter o foco e a energia ao longo de semanas muito exigentes, em que temos de estar sempre ao mais alto nível”, confessa. Aponta também o desgaste físico e emocional e a falta de tempo para recuperar.
Por outro lado, há momentos que recompensam todos os sacrifícios: “quando sentimos que a orquestra respira como um corpo, que soa como um instrumento e que a música flui. É aqui que tudo faz sentido”.
“Já me senti pequena num mundo onde se grita muito e se ouve pouco. Mas nunca parei”
Como em qualquer profissão exigente, os momentos de frustração fazem parte do percurso. "Houve alturas em que me apeteceu desistir. Em que pensei: 'Isto não vale a pena. Isto não é para mim.' E não foi por falta de amor à música, foi por tudo o resto: o cansaço, as injustiças, a falta de reconhecimento."
Momentos em que o esforço parecia não ser suficiente: "Já me senti pequena num mundo onde se grita muito e se ouve pouco. Mas nunca parei. Mesmo quando duvidei de tudo, a música foi sempre o meu alicerce."
Desses momentos difíceis, nasceram duas grandes lições: "É preciso ser muito forte para continuar, e essa força tem de vir de dentro. Ninguém a dá — se não a encontrarmos, temos de a criar."
“É preciso ter casca rija. Ser flexível sem perder a espinha dorsal. Saber ouvir, adaptar-se, saber quando falar e, sobretudo, quando estar calado”
Sobre as qualidades essenciais para um músico crescer e sobreviver no meio orquestral, é perentória: "É preciso ter casca rija. Ser flexível sem perder a espinha dorsal. Saber ouvir, adaptar-se, saber quando falar e, sobretudo, quando estar calado. A humildade é a chave, mas não pode existir sem dignidade."
Reconhece que no meio orquestral “há talento em todo o lado”, por isso, a distinção faz-se pela atitude e profissionalismo: “pela forma como lidamos com os colegas, a consistência e a capacidade de estar ao serviço da música, mesmo nos dias maus”.
Além disso, sublinha, é fundamental saber tocar em grupo: "Não é chegar, sentar, abrir a partitura e tocar sozinho com uma pala nos olhos e tampões nos ouvidos. É escuta ativa, sensibilidade ao outro, estar em contacto com o coletivo." E, por fim, um ingrediente indispensável: "É preciso ter amor próprio, porque nem sempre o ambiente é gentil… e ter sentido de humor!"
“juntos escrevemos uma história que só a música pode contar"
Entre tantas experiências musicais, destaca: “cada concerto traz uma nova energia, cada maestro uma nova perspetiva, cada obra um novo desafio”, num “contante constante processo de transformação e redescoberta que torna esta profissão tão fascinante."
Se tivesse de descrever, em poucas palavras, o que mais a emociona em tocar numa orquestra, a resposta é simples: "É ser parte de algo maior, de transformar 30, 40 ou 80 instrumentos num só, onde cada nota é uma palavra, cada pausa um suspiro, e juntos escrevemos uma história que só a música pode contar."
“Ouvir os músicos, perceber as suas ideias e desafios, é a base para um ambiente criativo, produtivo e saudável"
Em relação ao panorama orquestral português reconhece uma evolução, mas com “muita resistência à inovação”: “Muitas vezes ainda reina o 'sempre se fez assim', e isso bloqueia o crescimento artístico. Claro que há espaços para mudança, mas é preciso mexer no sistema”.
Um dos aspetos que considera fundamental é o diálogo nas instituições: "Sem este diálogo aberto, não há inovação que funcione. Ouvir os músicos, perceber as suas ideias e desafios, é a base para um ambiente criativo, produtivo e saudável."
Acredita que o caminho passa necessariamente pela capacidade de arriscar: "A inovação só acontece quando músicos e diretores artísticos estão dispostos a experimentar repertórios novos e a abrir portas para outras formas de trabalhar. O futuro passa por isso — e quem não se adapta, fica para trás."
“A música contemporânea tem o seu lugar, desde que seja feita com qualidade e com um propósito artístico claro”
Para Ana Madalena, além do repertório tradicional, “é fundamental que os músicos mantenham a mente aberta e se desafiem”, mas nem sempre seja fácil trabalhar o repertório contemporâneo: "Nem toda a música contemporânea me entusiasma, confesso, e acho que ainda há muito repertório clássico maravilhoso por descobrir e explorar antes de mergulhar de cabeça no novo”.
“A música contemporânea tem o seu lugar, desde que seja feita com qualidade e com um propósito artístico claro. Para mim, é uma questão de equilíbrio entre tradição e inovação”, afirma.
“Não deixem que o medo ou a insegurança vos travem"
A quem sonha seguir o mesmo caminho, deixa palavras de realismo e motivação: "Nada é garantido. Nem o talento, nem o esforço, nem o reconhecimento. Conseguir um lugar numa orquestra é difícil. É um processo longo, feito de sucessivas tentativas, horas e horas de estudo, audições, provas... Nesta passei, naquela já não passei (e queria tanto!)."
A receita, diz, passa pelo trabalho contínuo e pela preparação interior: "Estudem, escutem, sejam rigorosos e humildes. Aprendam a ouvir os outros (não só a tocar), respeitem o grupo e cultivem a paciência — nem sempre é fácil, mas é essencial. Não deixem que o medo ou a insegurança vos travem."
"Tudo o que tenho foi construído com escolhas difíceis, sacrifícios silenciosos e uma fé teimosa na música”
Para além da paixão, a música exige disciplina, foco e persistência: "Tudo o que tenho foi construído com escolhas difíceis, sacrifícios silenciosos e uma fé teimosa na música, mesmo quando tudo à volta parecia pedir para parar. A música não me deve nada, sou eu que lhe devo tudo. Foi ela que me moldou, que me sustenta nos dias escuros e me dá voz quando faltam as palavras."
Mesmo nos momentos mais difíceis, quando a vontade de desistir se torna uma ameaça, a relação com a música é mais forte: "Já houve momentos em que quis desistir, em que tudo doía, por dentro e por fora. Mas volto sempre porque é nela que me reencontro."
E conclui, com uma mensagem direta a quem está a começar: "Se esta entrevista puder acender uma chama (mesmo que pequena) de continuar, de tentar mais uma vez, de acreditar apesar de tudo, então já valeu a pena. Porque no fim, é isso que a música nos ensina: a não desistir de sentir, de sonhar e de ser."
Ana Madalena, em homenagem à esposa de Bach
Esta extraordinária paixão pela música começou logo no seu nascimento, quando o seu pai escolheu chamá-la de Ana Madalena, em homenagem à esposa de Bach, que considerava “um génio absoluto, o mais próximo do divino que a música alguma vez chegou”: “Dar-me este nome foi a forma de ele eternizar essa admiração e, desde o nascimento, passar-me o amor pela música”.
Assim, foi em casa, por influência do pai — “músico, melómano incansável”, que lhe mostrou “o poder transformador da música”, que cresceu a ouvir “Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven, todas as grandes obras corais e sinfónicas”.
“a disciplina, o foco e a crença de que com persistência, tudo é possível”
O seu pai foi membro fundador da Escola de Música e do Coro dos Pequenos Cantores de Esposende, onde tudo começou: “Entre ensaios, vozes em harmonia, partituras e CD’s espalhados pela casa, percebi desde cedo que a música seria o meu caminho”.
Aos cinco anos recebeu o primeiro violino e rapidamente passou também a cantar obras de Haendel a Britten, sob a direção do próprio pai. Foi com ele que aprendeu que “a disciplina, o foco e a crença de que com persistência, tudo é possível”.
“É nesse espaço [orquestra] que me sinto mais inteira, mais ligada ao som, à história da música e ao meu pai”
Os primeiros professores, Paulo Matos e Macau Filipe, também tiveram um papel decisivo: "Marcaram profundamente o meu crescimento artístico e pessoal, e hoje são também grandes amigos."
A prática orquestral surgiu com naturalidade. "Apaixonei-me desde cedo pela emoção de pertencer a algo maior, de ser uma voz entre muitas, mas com responsabilidade individual. É nesse espaço — o da orquestra — que me sinto mais inteira, mais ligada ao som, à história da música e ao meu pai que partiu há pouco, mas está sempre comigo. A sua paixão pela música é a força que me move todos os dias”, confessa.
A marca dos professores Zofia Wóycicka e Sergey Arutyunyan
Ao longo da sua formação, encontrou professores que deixaram marcas profundas: "Todos tiveram um papel fundamental na minha formação. Acolheram-me, transmitiram-me segurança e ajudaram-me a construir a estrutura técnica e artística que me permitiu crescer."
Sobre o professor Sergey Arutyunyan, afirma: "Mostrou-me um mundo completamente diferente. Um músico de uma sensibilidade extraordinária, que me ajudou a libertar tecnicamente, a encontrar a minha voz dentro da partitura, a deixar espaço para a emoção e para a intuição. Com ele, percebi que a música não vive apenas da perfeição, mas também da autenticidade." Foi com o professor Sergey que terminou a Escola Profissional de Música de Viana do Castelo, preparando o Concerto de Mendelssohn para o Ensino Superior.
A professora Zofia Wóycicka, com quem estudou na ESMAE, é muito mais do que uma professora: “é uma segunda mãe e a figura mais determinante da minha carreira. Com ela aprofundei a minha identidade musical, a maturidade e a capacidade de procurar sempre mais em cada obra. Conhece-me profundamente enquanto violinista e pessoa."
Da exigência pedagógica de Zofia Wóycicka, nasceu a base técnica que hoje sustenta a sua carreira. "É o meu grande exemplo como líder, violinista e pedagoga, com uma dedicação incansável aos seus alunos e à música."
"Foi neste contexto [Música de Câmara] que desenvolvi uma escuta ativa, uma sensibilidade refinada e um sentido de partilha musical que me acompanham em tudo o que faço."
Além da orquestra, Ana Madalena Ribeiro apresenta-se regularmente a solo e em música de câmara. "Apresentar-me como solista tem sido, ao longo dos anos, uma experiência profundamente enriquecedora”, diz. Entre os momentos marcantes, destaca o Concerto para Violino de Brahms, com o qual venceu concursos importantes, incluindo o Prémio Jovens Músicos. "Os recitais com a pianista Olga Vasilieva, minha grande amiga e companheira de palco desde sempre, são momentos musicais que guardo com enorme carinho”, acrescenta.
Mas é na música de câmara que encontra o espaço mais íntimo da sua expressão: "Foi neste contexto que desenvolvi uma escuta ativa, uma sensibilidade refinada e um sentido de partilha musical que me acompanham em tudo o que faço." Sob a orientação do professor Ryszard Wóycicki, nasceu essa paixão, que considera o seu maior “motor artístico”.
"A música de câmara ensinou-me a arte do diálogo, da escuta profunda e da construção coletiva. É uma escola de humildade e rigor, onde cada voz importa e cada silêncio tem peso”, destaca. Aprendizagens que moldaram também a sua forma de estar na orquestra, na liderança do naipe e na interação com os colegas e com o maestro: “São dimensões diferentes de uma mesma identidade musical”.
“Assim como interpretamos os clássicos com responsabilidade e rigor, devemos dar espaço às vozes de hoje, que um dia serão o repertório do futuro"
Na sua carreira, destaca-se igualmente a estreia de obras contemporâneas, como o Concerto Antiparathesis de Dimitri Andrikopoulos: "Foi uma verdadeira aventura. Substituí a violinista que fez a estreia mundial e tive o enorme desafio de preparar a peça em muito pouco tempo para apresentar em Portugal com a Orquestra da ESMAE. É uma música incrível, dificílima, com muitas nuances e inovação, e foi um enorme prazer tocá-la."
A música contemporânea representa, para si, “um território de descoberta, risco e criatividade”, assim como um “desafio técnico e auditivo”: “Obriga-nos a sair do automatismo, a encontrar novas linguagens e novas formas de comunicação sonora, aproxima-nos dos compositores, do seu processo criativo, das suas dúvidas e visões. Estrear uma obra é também entrar nesse universo e ser parte ativa da criação artística”.
Vê o repertório contemporâneo como uma extensão natural do percurso: "Assim como interpretamos os clássicos com responsabilidade e rigor, devemos dar espaço às vozes de hoje, que um dia serão o repertório do futuro."
“Desejo continuar a encontrar sentido e liberdade em cada projeto que abraço"
Olhando para o futuro, quer continuar “a tocar cada vez mais e melhor”, ao lado de músicos qua a inspirem e desafiem, tanto como violinista, como pessoa: “Quero explorar diferentes universos musicais, deixar-me surpreender e crescer artisticamente sem amarras."
Acima de tudo, quer manter viva a essência que a trouxe até aqui: "Desejo continuar a encontrar sentido e liberdade em cada projeto que abraço."