Sandra Bastos
Luís Vieira tem-se afirmado como uma das figuras mais respeitadas da nova geração de músicos portugueses. Trompa solista da Orquestra Sinfónica Portuguesa desde 2015, com passagem marcante pela prestigiada Karajan Akademie da Berliner Philharmoniker, o seu percurso combina talento, exigência e uma permanente busca de sentido artístico. Mais do que executar notas com precisão, procura, em cada obra, descobrir uma história para contar, uma emoção para partilhar, um significado para transmitir. Nesta entrevista, partilha a sua visão sobre a exigente profissão de músico de orquestra, o impacto do ensino, o papel insubstituível da música de câmara e os sonhos que ainda guarda para o futuro.
“Somos o canivete suíço da orquestra”
Para Luís Vieira o papel da trompa numa orquestra sinfónica é fascinante: “Somos o canivete suíço da orquestra: ora estamos a dobrar as madeiras com suavidade, ora a fundir com as cordas, ora em momentos heroicos com os metais”.
Porém, esta versatilidade constante torna o trabalho do trompista muito exigente – “essa necessidade de mudar de “máscara” consoante a cor da orquestra naquele instante”.
“a pressão psicológica existe, sobretudo porque o erro é público e imediato”
Trompa Solista na Orquestra Sinfónica Portuguesa, desde a temporada 2015/2016, confessa que não há margem para dias ‘mais ou menos’: “O nível de concentração, preparação e consistência que se espera de um músico de orquestra é altíssimo e a pressão psicológica existe, sobretudo porque o erro é público e imediato”.
Mas nem tudo são tensões - há também recompensas que podem atingir o intocável: “Quando tudo se alinha, há uma espécie de transcendência coletiva. É raro, mas quando acontece, vale tudo.”
“O desafio, e também a recompensa, está em encontrar significado em tudo o que tocamos”
Compositores como Richard Strauss, Gustav Mahler ou Anton Bruckner “escreveram verdadeiras cartas de amor à trompa”: “É impossível não sentir prazer ao tocar esses papéis”.
Mas o prazer não está apenas nas grandes páginas deste repertório. “O desafio, e também a recompensa, está em encontrar significado em tudo o que tocamos, mesmo nas obras mais discretas ou menos conhecidas”, afirma.
“o público está presente para desfrutar da música e do momento”
Sobre o nervosismo de entradas solísticas ou momentos de grande visibilidade, lida “com respeito, preparação… e aceitação”, sem confiar na sorte.
“Procuro preparar esses momentos: tecnicamente, musicalmente e psicologicamente. Mas também aprendi a aceitar que o erro faz parte do jogo. E, às vezes, ajuda lembrar-me que o público está presente para desfrutar da música e do momento. Isso muda a perspetiva. Não é um exame, é uma partilha”, sublinha.
“é impossível fazer este caminho sem tropeçar”
Considera que “é impossível fazer este caminho sem tropeçar”, mas são precisamente esses momentos que trazem as maiores aprendizagens, sobretudo no contexto das audições.: “Cada erro, cada prova que não corre como esperávamos, cada frustração, é uma oportunidade para perceber o que ainda falta, o que pode ser melhorado.”
“A forma como me preparo, como estruturo o estudo, como reajo à pressão, tudo isso fui aprendendo com base no que correu mal. E continuo a aprender”, explica. É, assim, uma profissão onde a procura é constante e “não há ponto de chegada”: “Podemos ter um bom momento hoje e amanhã ter de reconstruir tudo outra vez. Mas é isso que a torna tão exigente… e tão viciante”.
“o trabalho sério e competente que tem sido feito no ensino artístico especializado, por professores muitas vezes esquecidos”
Sobre as mudanças no meio orquestral português, destaca a qualidade dos músicos portugueses: “O nível é cada vez mais alto, ao ponto de vermos, todos os anos, jovens músicos a entrarem nas melhores orquestras da Europa e em todos os instrumentos. Isso não acontece por acaso”.
Para Luís, esse crescimento é reflexo do trabalho de base feito no ensino artístico especializado, frequentemente desvalorizado, mas absolutamente essencial. “A evolução geral é muito positiva — e isso diz muito sobre o trabalho sério e competente que tem sido feito no ensino artístico especializado, por professores muitas vezes esquecidos, mas fundamentais”, sublinha.
“seria muito mais fácil se houvesse uma valorização real da cultura como pilar da sociedade”
Essa renovação tem-se refletido também nas principais orquestras do país, como a Gulbenkian, a Sinfónica Portuguesa ou a Casa da Música, que nos últimos anos têm aberto vagas e dado espaço às novas gerações. No entanto, esta erupção de talento esbarra, muitas vezes, na falta de uma política cultural estruturada.
“Nunca gostei de usar a política como desculpa — acredito no trabalho, na iniciativa, na capacidade de fazer acontecer mesmo com poucos recursos. Mas é evidente que seria muito mais fácil se houvesse planeamento, apoios estruturais e uma valorização real da cultura como pilar da sociedade”, acrescenta.
“A profissão é exigente, muitas vezes ingrata, e não faz sentido dourar a realidade”
Professor na Escola Superior de Música de Lisboa e na Escola Superior de Artes Aplicadas, em Castelo Branco, Luís Vieira procura ensinar aquilo que aprendeu e transmitir tudo o que lhe foi passado ao longo dos anos, sem filtros: “Tento ser o mais honesto possível com os meus alunos, para o bem e para o mal. A profissão é exigente, muitas vezes ingrata, e não faz sentido dourar a realidade”.
Por outro lado, quer ser um apoio positivo: “Mostrar que é possível crescer, melhorar, evoluir todos os dias. Mais do que formar trompistas “bons executantes”, procuro formar músicos conscientes, autónomos, com curiosidade, sentido crítico e responsabilidade artística”.
“Não desistam dos vossos sonhos. São vossos, de mais ninguém.”
Aos jovens que sonham tocar numa orquestra, lembra “que o futuro está nas mãos deles” e não depende “de sorte, de contactos ou de desculpas”, ou seja, “depende do trabalho que fazem, da consistência, da qualidade”. “Costuma-se dizer que a verdade é como o azeite: vem sempre ao de cima. A qualidade também”, reconhece.
O conselho é claro: “Quem trabalha bem, com seriedade, humildade e profissionalismo, está sempre mais perto de chegar onde quer. Não desistam dos vossos sonhos. São vossos, de mais ninguém. Corram atrás deles com tudo o que têm. Não esperem que alguém os concretize por vocês — sejam vocês os primeiros a acreditar, os primeiros a levantar-se cedo, os primeiros a tentar outra e outra e outra vez…”
“A música de câmara obriga-nos a ter opinião, a ouvir ativamente, a dialogar.”
Luís Vieira é membro fundador do quinteto de metais 100 Caminhos, e do ESML+ESART Horn Project — projetos que refletem a sua paixão pela música de câmara, que acredita ser “absolutamente essencial”.
“É onde se aprende realmente a ouvir, a respirar com os outros, a tomar decisões musicais em conjunto, sem depender de um maestro”, explica. Enquanto na orquestra é possível esconder-se num naipe, “na música de câmara, não há esconderijo. Tudo conta.”
Por isso mesmo, é um espaço de excelência para a construção artística: “É onde se aprende a pensar música, não apenas a executar. A música de câmara obriga-nos a ter opinião, a ouvir ativamente, a dialogar.”
O chamamento da Trompa de Dale Clevenger
Antes da trompa, foi pelo piano que conheceu a música. Começou a estudar aos 6 anos, mas nunca sentiu verdadeira paixão pelo instrumento. “Tocava, gostava, mas não havia ali faísca”, recorda.
Tudo mudou numa noite de maio de 2000, quando, com apenas 11 anos, assistiu a um concerto da Orquestra de Chicago no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. No programa, a 5.ª Sinfonia de Mahler, com Dale Clevenger, lendário trompista norte-americano: “Lembro-me do impacto físico daquele som. Foi quase um chamamento. A partir desse dia, o som da trompa nunca mais me saiu da cabeça”.
“Aos 14, tomei uma decisão consciente: queria mudar de instrumento. Falei com o professor de trompa da Academia de Música de Castelo de Paiva, Marco Costa, arranjaram-me uma trompa emprestada… e só depois é que comuniquei aos meus pais. Já estava tudo tratado”, confessa.
“há muito valor em fazer um percurso de ensino superior cá em Portugal, com professores competentes e atentos”
Ao recordar o seu próprio percurso, não esquece o impacto decisivo que os seus professores tiveram na sua formação: “No ensino secundário, o Marco Costa foi decisivo — pela forma como criava motivação nos alunos, como estabelecia uma relação próxima, positiva, construtiva. Isso, nessas idades, faz toda a diferença.”
Mais tarde, na ESART, foi com o professor Paulo Guerreiro que consolidou as bases que o ajudaram a crescer com segurança e espaço para evoluir: “O trabalho dele ajudou-me a construir bases sólidas, com uma mentalidade positiva e espaço para crescer com tempo”.
Com a experiência acumulada, reflete hoje sobre um fenómeno que observa com alguma preocupação: a tendência crescente de muitos jovens músicos partirem demasiado cedo para o estrangeiro, como se isso fosse garantia de qualidade. “Cada caso é um caso, claro, e depende da maturidade de cada um. Mas para a maioria, há muito valor em fazer um percurso de ensino superior cá em Portugal, com professores competentes e atentos, e só depois partir com mais maturidade, mais estrutura e mais autonomia. Afinal, três anos passam depressa — e aos 20 ou 21 anos ainda há muito por consolidar.”
“o som como veículo de expressão” de Radovan Vlatkovic
Ao longo da sua formação, teve a oportunidade de trabalhar com alguns dos maiores nomes da trompa mundial, que marcaram de forma profunda o seu percurso artístico e pessoal.
O primeiro nome que destaca é o de Radovan Vlatkovic, a grande referência do som ideal da trompa desde os seus anos de estudante. “Cresci a ouvir gravações dele. Era o meu modelo, e durante anos foi mesmo um sonho poder conhecê-lo e estudar com ele”, conta. Quando isso aconteceu, a experiência superou as expectativas: “Descobrir que além do músico extraordinário havia um ser humano generoso, humilde e atento… foi um bónus que eu nem esperava.”
“O que mais me marcou no Radovan foi o foco absoluto na música — na intenção, nas cores, na narrativa. Nunca foi sobre a técnica pela técnica, mas sim sobre o som como veículo de expressão”, sublinha.
O rigor de Eric Terwilliger e autenticidade de Sarah Willis
Com Eric Terwilliger, a aprendizagem seguiu um caminho distinto: “Trouxe-me método, exigência, rigor. Com ele aprendi a não aceitar respostas fáceis, mesmo quando isso significava desmontar tudo o que achavas que sabias.”
Sarah Willis cruzou-se na sua vida em dois momentos diferentes — primeiro como professora no CSMA, em Zaragoza, e mais tarde durante o período como academista na Berliner Philharmoniker. “O que me marcou nela foi a combinação rara entre excelência artística e humanidade. É uma pessoa genuinamente comunicativa, acessível, mas ao mesmo tempo incrivelmente exigente consigo própria e com as pessoas ao seu redor”, afirma.
Além da exigência artística, Sarah Willis ensinou-lhe uma importante lição de autenticidade: “Mostrou-me que não há atalhos, mas também que não precisamos de abdicar da nossa personalidade para estar ao mais alto nível.”
“naquela orquestra [Filarmónica de Berlim] todos os músicos estão constantemente a comunicar entre si”
A passagem de Luís Vieira pela prestigiada Karajan Akademie da Berliner Philharmoniker (Orquestra Filarmónica de Berlim) foi um dos momentos mais transformadores da sua carreira. Mais do que as grandes figuras com quem se cruzou, com maestros como Rattle, Gergiev ou Haitink, o que verdadeiramente o impressionou foi a forma de fazer música dentro da própria orquestra.
“O que mais me marcou foi perceber que naquela orquestra todos os músicos estão constantemente a comunicar entre si, a ouvir-se com uma atenção quase invisível, mas total”, explica. As memórias que guarda são exemplos de um nível de escuta e sintonia raros. Num ensaio da 8.ª de Bruckner, recorda: “eu tinha um pequeno solo como 3.ª trompa. Quatro compassos antes, um dos violoncelistas da última estante virou-se e olhou diretamente para mim. Sabia exatamente o que vinha”.
Outro episódio que o marcou aconteceu na 2.ª de Mahler: “toda a orquestra tinha de atacar uma nota em uníssono absoluto, após um silêncio. O gesto do maestro era ambíguo, quase impercetível — e mesmo assim, todos entravam no momento certo. Sem falha.” Admirado, perguntou ao colega Fergus McWilliam como era possível tamanha precisão. A resposta foi simples e reveladora: “Consegues sentir no ar quando atacar a nota.”
Define esta experiência foi uma verdadeira lição sobre o significado profundo de tocar em conjunto: “não apenas seguir, mas sentir com os outros. E estar sempre ao serviço da música.”
“senti que estava numa realidade paralela, rodeado de músicos que durante anos eu tinha ouvido e visto em gravações”
Para Luís, escolher apenas um momento marcante dos seus anos com a Filarmónica de Berlim é quase impossível: “foram tantos e tão intensos que é quase injusto destacar apenas um”. O primeiro grande impacto chegou logo no anúncio do resultado: “recordo com muito carinho o momento em que soube que tinha ganho a prova. Foi um misto de alívio, alegria e incredulidade.”
Pouco depois, o primeiro ensaio marcou o verdadeiro início desta nova realidade: “senti que estava numa realidade paralela, rodeado de músicos que durante anos eu tinha ouvido e visto em gravações. Estavam ali, ao meu lado, a conversar comigo no intervalo como se fosse a coisa mais natural do mundo”.
Vieram depois os concertos, muitos deles de intensidade musical e emocional quase avassaladora: “a 2.ª, 3.ª e 5.ª sinfonias de Mahler, a 8.ª de Bruckner… momentos de intensidade emocional e musical brutais.”
Apesar de tudo, confessa que, por vezes, a pressão o impedia de aproveitar plenamente a experiência: “a concentração e o foco eram tão grandes, a responsabilidade tão presente, que por vezes não consegui simplesmente estar ali, com mais leveza.”
“quero continuar a apostar seriamente na formação dos meus alunos”
Para o futuro, gostaria de explorar novos caminhos na Trompa: "Ainda há repertório que não conheço, obras que quero estudar, tocar, descobrir. Mas também novos caminhos: música eletrónica, ensino virtual, colaborações fora do universo tradicional… um álbum, talvez”.
Entre todas as ambições, há uma vertente que ocupa um lugar muito especial: "Tenho uma enorme paixão pelo ensino e quero continuar a apostar seriamente na formação dos meus alunos. Ver o crescimento deles é das coisas que mais me realiza."
Sem perder o entusiasmo pelo trabalho em orquestra, acredita que o percurso de um músico nunca está terminado: "Sei que ainda há muito por explorar, e também música que ainda não existe, mas que será criada. E espero estar por perto quando isso acontecer."