Sandra Bastos
Há mais de duas décadas na Orquestra Metropolitana de Lisboa, Sérgio Charrinho é hoje uma referência do Trompete em Portugal. Nesta entrevista, fala sobre os bastidores da vida orquestral, o papel central do trompete, os desafios do ensino e da performance, e a urgência de modernizar a comunicação e o repertório das orquestras para conquistar novos públicos.
“Tem sido uma bela caminhada, já com 23 anos, com tudo aquilo a que um músico tem direito”
Sérgio Charrinho desempenha as funções de 1.º Trompete na Orquestra Metropolitana de Lisboa desde janeiro de 2003: “Tem sido uma bela caminhada, já com 23 anos, com tudo aquilo a que um músico tem direito, a que se junta a responsabilidade de um 1º trompete”.
Considera a Metropolitana “uma orquestra especial porque faz parte de um projeto único no nosso país, que combina a vertente artística com a vertente pedagógica”. “Para além de músicos, somos professores e isso é uma combinação fantástica para a nossa evolução como músicos. Se há 23 anos quando concorri para este lugar de orquestra não era a minha ambição dar aulas, hoje acho que as duas vertentes são indissociáveis”, confessa.
“o trompete tem uma função vital na orquestra”
Em relação ao papel do trompetista dentro de uma orquestra, Sérgio não tem dúvidas: “Não querendo parecer presunçoso, acho que o trompete tem uma função vital na orquestra”.
“Nas orquestras clássicas assume uma função de guia do tempo e da afinação. Nas orquestras sinfónicas, tem uma função mais solística, mas sendo uma voz soprano na família dos metais e com uma grande projeção sonora, assume também um papel de liderança”, explica.
A própria posição dos trompetes na orquestra, na fila de trás, não é por acaso, é “para que todos os músicos possam ouvir as suas pontuações rítmicas e guiar na afinação”. E a posição central, geralmente de frente para o maestro, “para que exista uma ligação visual direta entre ambos”. A própria posição em que é tocado o trompete, “permite uma reação muito direta com o tempo do maestro”.
“deve haver uma manutenção técnica diária, tal como um desportista de alta competição”
Para Sérgio Charrinho, “o trabalho de um músico de orquestra não se esgota no dia do concerto”: “Geralmente, para cada programa (semanal) há uma preparação prévia que passa pela análise do repertório a tocar, trabalhar pequenos excertos de maior dificuldade, mas essencialmente existe uma preparação técnica que nos permite ter um controlo absoluto sobre o instrumento”.
“No caso do trompete, sou defensor de que deve haver uma manutenção técnica diária, tal como um desportista de alta competição, para que no dia do concerto estejamos preparados e confiantes para a performance”, sublinha.
“Assim, o dia de um músico de orquestra, passa por um trabalho técnico a que geralmente chamamos aquecimento, um ou dois ensaios que podem ir até três horas cada um, no caso do trompete geralmente uns exercícios de relaxamento muscular da embocadura no final dos ensaios e, em caso de necessidade, estudar na preparação de outras peças para os projetos musicais seguintes. Apesar de parecer muito exaustivo, é um trabalho recompensador já fazemos aquilo que gostamos”, acrescenta.
“os trompetistas são pessoas tranquilas e bem-dispostas”
A comunicação no naipe flui naturalmente, já que, “por norma, os trompetistas são pessoas tranquilas e bem-dispostas”. Destaca “a sorte de ter um colega fantástico com quem é fácil de trabalhar”.
“Quem toca trompete sabe que existem muitas dificuldades técnicas no nosso instrumento, pelo que devemos trabalhar com humildade, uma vez que nada é garantido para sempre, todos estamos sujeitos a falhas e a dias menos bons”, conta.
No seu naipe, existe “um ambiente muito saudável e de entreajuda”: “Mesmo sem falar, é possível perceber o que o outro precisa musicalmente para que o naipe, que é o mais importante, tenha um bom desempenho”.
“há uma série de regras de companheirismos saudável” como “ser alegre e divertido”
Para crescer numa orquestra, um músico deve ser humilde, mas também ter “uma boa dose de confiança e vaidade, não apenas na música orquestral, mas em todos os géneros e formações musicais”.
Sérgio defende que “há uma série de regras de companheirismos saudável: ser bom colega e respeitador, ser colaborativo no trabalho, cumpridor de horários, organizado com a sua agenda”. E por fim, mas não menos importante, uma regra que aprecia especialmente - “ser alegre e divertido”.
“tenho a sorte de tocar em muitas ocasiões com amigos”
De entre tantas experiências musicais que já vivenciou, é difícil escolher as mais especiais. Poderia destacar a primeira vez que tocou em orquestra ou tocou uma grande obra sinfónica ou com um determinado solista ou maestro. “Mas também pode ser simplesmente porque partilhamos o palco com alguém que gostamos muito ou que admiramos”, sublinha.
“Eu diria que, nesse contexto, sou um felizardo porque pisei muitos palcos nos mais variados contextos musicais, mas essencialmente porque tenho a sorte de tocar em muitas ocasiões com amigos”, confessa.
“É uma aprendizagem constante até ao fim da nossa carreira”
“Todos passamos por um período enquanto estudantes em que estamos em constante evolução e aprendizagem. Quando chegamos a profissionais, temos mais experiência musical, mas temos a difícil tarefa de nos mantermos bem tecnicamente com o nosso instrumento, o que com o avançar da idade pode ser um desafio”, explica.
As dificuldades vão, assim, se transformando, assim como o tipo de stress, que agora envolve uma maior responsabilidade: “Existe sempre uma expectativa grande no nosso trabalho e a gestão dessa expectativa, que também é nossa, é difícil de gerir. É uma aprendizagem constante até ao fim da nossa carreira.”
“Como músicos, todos passamos por altos e baixos. O mais importante é manter a confiança no nosso trabalho e manter o mesmo foco e empenho”, afirma.
“É possível, nos dias de hoje, exercer uma profissão como trompetista sem ser numa orquestra”
Aos jovens que querem fazer carreira numa orquestra aconselha “um nível de preparação muito organizado, metódico e regular”: “Estes três fatores farão toda a diferença no momento da audição. Para além disso, é necessário ter um critério de exigência muito alto, não deixar passar erros durante o estudo e estar preparado para este processo durante muitos meses. Apesar de toda esta exigência, acho que é um sonho que está ao alcance de todos, no final de contas é um processo mental; quem muito quer, acaba por ser bem-sucedido”.
No entanto, lembra que apesar de muitos alunos ambicionarem tocar numa orquestra, há outras possibilidades de carreira: “É possível, nos dias de hoje, exercer uma profissão como trompetista sem ser numa orquestra; quer seja numa banda militar, como freelancer ou enveredando pela via do ensino, o que acaba por ser o destino de muitos alunos”.
“Infelizmente, as vagas para músico de orquestra são muito poucas e podem levar anos a estar disponíveis. E se falarmos no contexto nacional, essa realidade é ainda pior. O nível dos concursos é extremamente elevado, os candidatos são avaliados ao mais ínfimo detalhe, pelo que, a preparação para estes concursos deve ser muito exigente e criteriosa”, acrescenta.
“As orquestras têm de se modernizar não apenas no seu repertório, mas também na sua comunicação e na captação de novos públicos”
Sérgio Carrinho confirma o aumento do “número de jovens músicos portugueses nas orquestras, não só nacionais, mas também internacionais”: “O nível do ensino e de preparação dos alunos atingiu hoje um nível extraordinário, ainda mais tendo em conta o atraso significativo a nível cultural que o nosso país enfrenta”.
“Relativamente à inovação, penso que a generalidade dos músicos portugueses está desperta para essa realidade. As orquestras têm de se modernizar não apenas no seu repertório, mas também na sua comunicação e na captação de novos públicos”, sublinha.
Aponta, como “a maior dificuldade”, “o peso da tradição que ainda encontra algumas resistências”: “Percebemos hoje, mais do que nunca, que as grandes orquestras em todo o mundo abriram as portas a outras músicas para além da música erudita e em Portugal o caminho não poderá ser diferente.”
O que mais o emociona em tocar numa orquestra?
“Pessoalmente gosto do prazer de tocar em conjunto. É fantástico perceber que cada parte individual, quando tocada em grupo, se transforma em algo incrível. Se cada um fizer o seu melhor individualmente, isso resultará na elevação geral do grupo, como num verdadeiro trabalho de equipa.”
O destino inevitável da música
“O professor é um modelo e isso deixa uma marca profunda na nossa identidade”
Sérgio Charrinho começou a estudar música com o seu pai, maestro da Banda de Nisa, distrito de Portalegre, por isso a música era um destino inevitável num tempo em que “a banda, tal como o futebol, era uma das ocupações das crianças”.
“Eu, naturalmente virei-me para a música. Mas, ao contrário do que possa parecer, o início não foi fácil. Todos tínhamos de passar pela aprendizagem do solfejo e só mais tarde chegava a fase do instrumento. A minha fase do solfejo foi muito demorada e com vários recomeços, uma vez que aos 7/8 anos havia muitas distrações. A fase da aprendizagem do instrumento também foi conturbada, com passagem por vários instrumentos até à escolha final, o trompete. Mas tudo isso enriqueceu a minha formação musical e hoje percebo que foi uma mais valia”, conta.
Além do seu pai, teve três professores de trompete que o inspiraram: “Os professores na área da música têm uma influência muito forte na formação musical do aluno. O professor é um modelo e isso deixa uma marca profunda na nossa identidade não só musical como também humana”.
A “experiência maravilhosa” em Paris
“muitas horas de luta solitária”
Estudou no Conservatório Hector Berlioz, em Paris, com Bruno Nouvion, quando o conheceu numa masterclasse, em 1998. Essa “experiência maravilhosa”, numa cidade com uma tradição musical como Paris, durou três anos.
A evolução técnica foi “incrível”, mas implicou “muitas horas de luta solitária” com o trompete e com os livros de técnica do instrumento. “O que mais me marcou em Paris foi o nível competitivo das classes, o que se tornou num grande desafio para mim, mas ao mesmo tempo também um objetivo claro, o de ambicionar chegar a um nível mais elevado”, recorda.
A marca Trompete Almost6
“É uma inspiração e uma motivação para todos”
É membro fundador do quinteto de trompetes Almost6, com o qual editou o CD Sopros em Laboratório e organiza o Festival Internacional de Trompete Almost6 - uma marca importante no panorama trompetístico em Portugal.
“Naturalmente, criámos laços de amizade com os artistas que têm passado pelo festival e a qualidade artística evidenciada ao longo destes anos deixam marcas, não apenas nos alunos que participam, mas também em nós que estamos na organização. É uma inspiração e uma motivação para todos”, destaca.
Professor na Academia Nacional Superior de Orquestra
“Nos dias de hoje, o aluno procura resultados imediatos”
Atualmente, é professora de Trompete na Academia Nacional Superior de Orquestra (ANSO), onde procura aplicar a sua própria metodologia: “Como leciono há mais de vinte anos, já pude comprovar os resultados das minhas metodologias. Hoje, recebo alunos na ANSO que foram alunos de ex-alunos, o que facilita muito o processo. Há todo um tipo de trabalho que já vem interiorizado”.
Porém, o seu trabalho com os alunos tem mudado ao longo dos anos: “não porque sentisse que algo não estava a correr bem, mas essencialmente porque o perfil dos alunos mudou”.
“Nos dias de hoje, o aluno procura resultados imediatos, porque é aquilo que está habituado, tem tudo à distância de um click. Infelizmente, o trompete é um instrumento que não tem uma evolução rápida, o que pode levar a alguma frustração. Nem todos estão preparados para as muitas horas de estudo a repetir os mesmos exercícios. No entanto, é precisamente isso que é suposto fazer. É uma formação longa e difícil, mas para quem gosta e está disposto a lutar por isso, torna-se possível alcançar os objetivos”, afirma.
O Ensino do Trompete em Portugal
“Apesar de sempre termos tido trompetistas que se destacaram, esse número de alunos hoje é muito mais elevado”
O ensino do Trompete em Portugal “está bem e recomenda-se!”. O número de alunos que procuram aprender trompete é “fantástico e isso reflete-se naturalmente no nível dos alunos; quanto maior for o leque de alunos para seleção, maior e melhor será o nível, uma vez que o filtro de qualidade será mais apertado”.
Com efeito, “uma escola com uma classe com muitos alunos vai gerar uma maior competição entre os alunos e isso, inevitavelmente, aumentará o nível da classe”: “Apesar de sempre termos tido trompetistas que se destacaram, esse número de alunos hoje é muito mais elevado”.
A qualidade é patente no conhecimento generalizado dos métodos: “é muito raro ver alunos de trompete com problemas de embocadura e sem noção dos princípios técnicos básicos do instrumento”.
No mesmo sentido, há um “acesso imediato aos maiores trompetistas do mundo através das plataformas digitais e até um contacto facilitado com esses mesmos trompetistas através das redes sociais”. Ao contrário do que acontecia há 20/30 anos: “uma gravação pirata numa cassete era tocada vezes sem conta, as cópias dos métodos que existiam (alguns sem prefácio) eram usadas sem muito conhecimento e os contactos com um artista internacional era extremamente difícil ou impossível”.
“Felizmente, o nosso trabalho hoje é mais facilitado e isso também se deve à preparação dos novos professores que trouxeram uma nova metodologia e conhecimento para as salas de aula”, realça.
O futuro de Sérgio Charrinho
“continuar a explorar novas músicas, a compor e a fazer arranjos dedicados ao trompete”
“Felizmente, posso dizer que já fiz um pouco de tudo. Em termos de orquestra toquei o repertório mais emblemático do trompete e em mais de vinte anos algum desse repertório vai-se repetindo. Do repertório barroco, que é um repertório muito rico para o trompete, também já fiz uma grande parte dele, do mais conhecido do público ao menos conhecido”, lembra.
Recentemente, tem saído “um pouco” do repertório erudito e de orquestra, colaborando com vários artistas das “mais variadas áreas musicais”: “isso é algo que me dá muito prazer, até porque sempre me identifiquei mais com a música ligeira e de variedades do que propriamente com a música dita clássica”.
Para o futuro, promete “continuar a explorar novas músicas, a compor e a fazer arranjos dedicados ao trompete”.