Sandra Bastos
João Moreira é hoje um dos trompetistas portugueses mais destacados da sua geração, iniciado o seu percurso no meio orquestral, aos 22 anos, como Trompete Solo na Orquestra MusicAeterna, em Perm, na Rússia, passando depois pela Orquestra Clássica do Sul e, atualmente, pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, como Solista B.
Ser trompetista de orquestra vai muito além de dominar o instrumento: exige flexibilidade, disciplina diária, resistência emocional e uma profunda capacidade de fazer música de câmara — saber fundir-se com as cordas, articular como as madeiras ou sustentar corais com os metais. Destaca o prazer de emocionar o público, reconhecendo que todo o trabalho e sacrifício só fazem sentido para esse momento de partilha.
“Ser trompetista de orquestra não requer apenas “dominar” o instrumento (se é que isso existe), mas saber fazer música de câmara”
João Moreira ocupa as cadeiras de orquestra desde 2012. Primeiro, como Trompete Solo na Orquestra MusicAeterna, em Perm (Rússia), depois como Solista A na Orquestra Clássica do Sul de 2017 a 2019, e atualmente, como Solista B na Orquestra Metropolitana de Lisboa.
“Ser trompetista de orquestra requer que sejamos um músico flexível. Temos de tocar repertório do barroco ao contemporâneo, o que representa diferentes desafios técnicos. Ser trompetista de orquestra não requer apenas “dominar” o instrumento (se é que isso existe), mas saber fazer música de câmara”, explica.
Idealmente, é preciso “saber colar com as cordas, articular como as madeiras, ou tocar um coral com metais”. Confessa que, durante a temporada, “não há margem para relaxar, pois estar em forma é obrigatório”.
“Há que saber ter sangue-frio e não deixar que o nervosismo nos controle”
A nível emocional é um grande desafio: “Mentiria se dissesse que não há semanas em que fico sob pressão, maioritariamente posta por mim próprio, e nem sempre é fácil gerir essas emoções, pois a ansiedade e stress estão presentes. Há que saber ter sangue-frio e não deixar que o nervosismo nos controle”.
Longe vão os tempos em que João Moreira não aceitava errar e se sentia demasiado frustrado quando falhava. Hoje, consegue ficar mais relaxado, embora continue a não gostar de falhar.
“Há semanas mais relaxadas do que outras, é certo, mas há realmente repertório mais exigente par nós, seja por desafios técnicos, por estar mais exposto, etc..”, conta. Apesar do stress do momento, destaca “o prazer enorme” quando um concerto corre bem: “Não há sensação melhor. Vivo para esse momento.”
“Recompensador é ver um público feliz, um público que se emocionou com o que tocamos”
Como músico, considera que o maior desafio é “tocar repertório diferente todas as semanas”, tendo em conta que o obriga “a estar constantemente em forma, a ser flexível, a estar confortável em todos os géneros musicais”.
“No nosso dia-a-dia, também trabalhamos com maestros diferentes, com ideias e particularidades diferentes (muitas vezes sem os conhecermos), e temos de ter a capacidade de nos moldar aos estilos deles em três ou quatro dias de ensaio”, acrescenta.
Por outro lado, a relação com o público torna-se um dos maiores prazeres da profissão: “Recompensador é ver um público feliz, um público que se emocionou com o que tocamos, que nos aplaude avidamente”.
“aceitar que erramos e que as falhas vão fazer parte do nosso dia-a-dia”
Para estar em forma, João Moreira reconhece que não há milagres, apenas muito trabalho, “muito tempo de estudo, diariamente, dedicado aos exercícios de base, controle de ar, staccato, flexibilidade, endurance, etc...”.
“Esta preparação física também contribui para a preparação mental porque, se estivermos em forma, temos uma sensação de confiança, que se vai refletir na performance. Tenho serias dúvidas que o Cristiano Ronaldo se sentisse tão confiante se não trabalhasse tanto para estar em forma. (risos)”, sublinha.
Depois, é gostar “genuinamente” daquilo que se faz e “tirar prazer” de cada repertório que se toca: “Sentir sempre vontade de ir para palco por querermos oferecer aquele momento ao público. E, acima de tudo, aceitar que erramos e que as falhas vão fazer parte do nosso dia-a-dia. Quando tomamos essa consciência, vivemos mais relaxados no meio desta profissão. Essa foi uma das minhas maiores lutas”.
“Devemos, genuinamente, tirar prazer desta arte, de fazer música”
O segredo é ser apaixonado por esta profissão: “Devemos, genuinamente, tirar prazer desta arte, de fazer música. Creio que, um trompete solista, se deva sentir confortável em palco quando o foco está virado para ele, dada a exposição do lugar”.
Considera essencial que um trompetista seja capaz de “tocar qualquer estilo musical, desde o Barroco ao Contemporâneo”, e de fazer música de câmara: “saber tocar em grupo, fundir com os outros instrumentos, saber quando liderar ou quando se acompanha”.
A voz “de cima” da orquestra
E qual é o papel do trompete numa orquestra? Ser a voz mais forte? “Bom, o trompete é a voz mais aguda da família dos metais. O papel do trompete passa muito por aí, por ser a voz “de cima”, maioritariamente”, afirma.
“É um instrumento que assume muitos solos, muitas vezes a voz principal, o que leva a que o trompetista seja, muitas vezes, um foco de atenção. Ao mesmo tempo, se olharmos para o período barroco e algum clássico, o trompete já assume um desempenho mais rítmico, apenas. Em suma, o trompete é um instrumento que arca com um pouco de todas as funções inerentes”, explica.
“um dos principais fatores que marca a qualidade de uma orquestra é a capacidade de se fundirem”
Uma boa orquestra implica necessariamente bons músicos. No entanto, para João Moreira, “um dos principais fatores que marca a qualidade de uma orquestra é a capacidade de se fundirem. Isto é, serem capazes de fundir sons, tocar com a mesma articulação, ouvir todos os instrumentos e saber exatamente a função da sua voz no decorrer da música e, acima de tudo, terem a capacidade de se comunicarem enquanto tocam”.
Com efeito, “o nível da orquestra vai-se construindo ao longo do tempo”, tendo em conta que é preciso tempo para os músicos se conhecerem e se adaptarem às características de cada um.
Aponta um exercício “muito interessante” realizado habitualmente na Orquestra Metropolitana de Lisboa, a sua atual orquestra: tocar sem maestro. “Em alguns programas, é selecionado um músico para liderar a mesma, quer nos ensaios, quer nos concertos. Ou seja, há um sentimento de música de câmara que nos obriga a estar atento a tudo o que nos rodeia e não apenas ao maestro. Acredito que, quando se é capaz de tocar bem nestes moldes, conseguimos assegurar um bom nível de performance”, explica.
“tiro o chapéu a quem tenta inovar, quem luta com o que tem e o que não tem para criar novos projetos”
Reconhece que o nível musical das orquestras portuguesas tem “subido imenso”, e este desenvolvimento deve-se, na sua opinião, “ao nível do ensino estar cada vez melhor”. Destaca também as oportunidades dadas aos jovens músicos para tocarem nas orquestras profissionais: “não só lhes proporciona experiência, como lhe impulsiona a motivação”.
No entanto, sente-se “frustrado” por o nosso País não apostar na cultura, nomeadamente na música clássica: “É aí que tiro o chapéu a quem tenta inovar, quem luta com o que tem e o que não tem para criar novos projetos, novas orquestras, que dão oportunidade a mais músicos, que anseiam por poder tocar em orquestra. O meu problema é gostar demasiado de viver em Portugal, senão, não seria a minha escolha em termos artísticos”.
“talvez seja necessário entender o público-alvo a que nos queremos dirigir, entender o que procuram”
Lamenta que o ensino português não ajude a criar público para a música clássica, cabendo exclusivamente às orquestras essa missão: “É muito complexo, para que isso pudesse ser possível, ter-se-ia que rever o conteúdo programático escolar.”
A própria programação nem sempre ajuda a sustentar uma relação com o público: “Creio que, por vezes, as orquestras se focam demasiado em criar uma programação à volta de uma temática, com o que querem tocar, sem pensar totalmente no público português”.
Assim, “talvez seja necessário entender o público-alvo a que nos queremos dirigir, entender o que procuram, e criar uma programação consoante o mesmo, pelo menos para criar um público assíduo”.
“todo o nosso trabalho é para o público”
Para João Moreira, o que mais o emociona em tocar numa orquestra é ver o público feliz: “Uma sala cheia a aplaudir, por estarem felizes com o que “lhes demos”. Afinal, todo o nosso trabalho é para o público. Vivo para esse momento”.
Aos mais jovens, aconselha a sonha: “Ousem sonhar. Sonhem que é possível, sempre com a consciência do trabalho que terão ao longo do caminho. Entreguem-se a 100%, com seriedade, rigor e, acima de tudo, com muita paixão. O processo é duro, mas muito prazeroso”.
“Não tive qualquer momento de dúvida em relação à escolha do instrumento que queria”
A escolha do Trompete como instrumento aconteceu logo aos três anos de idade, já que o seu padrinho e um tio tocavam trompete em bandas filarmónicas: “de certa forma, sempre me fascinou esse instrumento. Não tive qualquer momento de dúvida em relação à escolha do instrumento que queria”.
Não obstante, estudou piano durante um ano, quando entrou, aos 8 anos, para a Academia de Música de Oliveira de Azeméis (onde a sua mãe era diretora pedagógica, professora de Formação Musical, Canto e Coro). Curiosamente, foi o seu tamanho que o levou a esperar pelas aulas de Trompete: “dado que ainda hoje não sou alto, com 8 anos de idade era realmente pequeno e o professor de trompete achou por bem esperar mais um ano (risos)”.
Os professores Jaime Barbosa, Sérgio Charrinho e Matthias Höfs
Naturalmente, a família foi determinante no seu percurso, a par de alguns professores. Destaca os professores Jaime Barbosa, Sérgio Charrinho e Matthias Höfs, por o motivarem e terem sido fundamentais no seu crescimento.
“O prof. Jaime Barbosa era já um professor experiente e soube dar as bases iniciais. No entanto, se falarmos em influências, a maior de todas surgiu com a minha ida para a EPME, com o prof. Sérgio Charrinho, atual colega de orquestra e grande amigo. O meio orquestral era já o que mais me impulsionava, e o facto de ter um professor que era músico de orquestra motivou-me ainda mais, pois era uma pessoa que vivia essa realidade no dia a dia”, sublinha.
Em Hamburgo, na Alemanha, onde fez o mestrado em Performance, estudou com um dos seus ídolos - Matthias Höfs: “foi o culminar do desenvolvimento e inspiração que já vinha a ter. O Matthias foca-se muito na preparação de provas orquestrais, com os seus alunos, o que foi uma mais-valia para mim, que sempre sonhei tocar numa. Deu-me uma perceção completa das provas, bem como dos excertos de orquestra”.
Os anos inesquecíveis com a Orquestra MusicAeterna, na Rússia
Mais tarde, entre 2012 e 2017, trabalhou com a Orquestra MusicAeterna, em Perm, na Rússia, sob a direção do maestro Teodor Currentzis: “Ufff... Esses 5 anos, levo-os para o resto da minha vida. Não podia ter tido melhor primeira experiência”.
Confessa que só mudou de orquestra porque não queria viver o resto da sua vida na Rússia, apesar da experiência ter sido muito positiva: “Pela orquestra e maestro, continuaria lá. O Teodor é uma pessoa muito intensa. Considero-o um génio. Um apaixonado pela música, sem medo de avançar com ideias divergentes, muitas vezes fugindo ao “standard”, um maestro que consegue tirar o melhor de cada músico. E claro, tem um Q de louco. (risos)”.
“Estar rodeado destes músicos obrigou-me a estar no meu melhor todos os dias”
Neste período, teve “a enorme felicidade de tocar com excelentes músicos”. Recorda Ivan Podyomov, atual oboé solo da Royal Concertgebouw: “era o solista da MusicAeterna quando cheguei, e fiquei doido (perdoem-me a expressão) ao ouvi-lo tocar”. E também Andrey Baranov (concertino), que tinha acabado de ganhar o prestigiado concurso “Queen Elisabeth”.
“As cordas eram verdadeiramente fascinantes, como tudo o resto. Estar rodeado destes músicos obrigou-me a estar no meu melhor todos os dias, especialmente numa fase de inexperiência como a que eu estava, pois foi a minha primeira orquestra, profissionalmente falando, quando tinha 22 anos”, acrescenta.
A programação era também “muito aliciante para um trompetista, com imenso repertório sinfónico, muito desafiante”. Teve de se superar no trompete barroco, já que tocavam repertório barroco com instrumentos da época.
“Era uma orquestra que gravava imenso, e tenho a enorme felicidade de estar numa boa parte dessas gravações, como as três óperas “Da Ponte” de Mozart, ou a “Sagração da Primavera” de Stravinsky, que são as que melhores memórias tenho. E claro, como era uma orquestra que viajava imenso, tive a oportunidade de ver o mundo com eles. Até hoje, estive em 19 países, e 14 foram com eles”, sublinha.
“Alguns dos melhores músicos com quem já tive a felicidade de tocar, são portugueses”
Na sua vasta experiência internacional aprendeu que “a música é linguagem universal”: “Quando vivenciamos experiências com pessoas de outras culturas, completamente opostas, no final, a música (e a forma como a sentimos) é igual, temos um elo comum”.
Aprendeu também que “em todo o lado, absolutamente em todo o lado, há músicos excecionais, bons e menos bons”. Lembra que cresceu “com a mentalidade que “lá fora” é que era incrível”, que “em países como a Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos todos eram incríveis”. Descobriu que, afinal, os portugueses são iguais: “Alguns dos melhores músicos com quem já tive a felicidade de tocar, são portugueses. Infelizmente, o que não temos em Portugal, são apoios suficientes à música clássica. Ou à arte em geral. Mas isso é outra história”.
“Os concursos, tal como as provas de orquestra, são temas muito complexos”
Em Portugal, venceu o 1.º Prémio, nível, superior, do Prémio Jovens Músicos em Trompete. Nos Estados Unidos da América, foi galardoado com o 2.º Prémio do Concurso ITG (International Trumpet Guild), na Classe de Solista e em Excertos de Orquestra. Estas distinções foram momentos “muito felizes” da sua carreira: “Creio que estaria a mentir se dissesse que não influenciaram. Ou seja, nunca recebi um trabalho por ter vencido esses concursos, mas deu-me visibilidade e, acima de tudo, credibilidade”.
Atualmente, vê os concursos com outra perspetiva, no sentido de valorizar mais a preparação, em que “o músico pode evoluir durante o processo”. Reconhece que os concursos trazem “visibilidade e credibilidade ao músico”.
Porém, num país com pouca oferta de trabalho, como Portugal, os concursos acabam por se tornar uma necessidade para os jovens “mostrarem o seu valor em palco”: “Os concursos, tal como as provas de orquestra, são temas muito complexos, com muitos fatores que não dependem apenas do músico”.
“Não é um momento que me vai definir enquanto músico”
Os concursos e as provas de orquestra são, muitas vezes, gatilhos de frustração para os músicos. João confirma: “os meus maiores momentos de frustração focam-se em provas de orquestra que não correram como desejado”.
Lembra uma prova em específico, em que queria “demasiado o lugar” e se preparou “exaustivamente”, pois “aquele lugar era um sonho de criança”: “Olhando para trás, hoje reconheço que não o fiz de forma saudável, porque estava demasiado “obcecado” com o lugar em questão. Quando chegou o dia da prova, não passei da 1ª ronda, o que me provocou uma desmotivação enorme, com alguns traços de depressão”.
Desta forma desafortunada, aprendeu que “uma preparação saudável não deve passar, nunca, por estar obcecado com a vitória”: “Devemos querê-la, sim, mas não de forma obsessiva. Uma preparação saudável não se trata apenas de tocar bem o repertório, mas sim ter a mentalidade correta”.
Aprendeu também que a sua maior preocupação deve ser em dar o seu melhor e, se não convencer o júri, isso o torna um músico pior: “Não é um momento que me vai definir enquanto músico. Aprendi também que, fazer música é para podermos desfrutar, para nos divertirmos a fazê-lo e só assim faz sentido”.
“uma boa coleção de momentos felizes em palco” e um concerto inesquecível
Hoje, sente-se feliz por “já ter uma boa coleção de momentos felizes em palco”.
Destaca o concerto, em 2012, que iria decidir a sua permanência na orquestra MusicAeterna: “Tocámos o Pássaro de Fogo, de Igor Stravinsky. Lembro-me de estar totalmente embrenhado naquela lufada de músicos fantásticos, como ainda estudava com o enorme Matthias Höfs, sentia-me inspirado todos os dias. Posso assumir que aquele concerto foi dos melhores da minha vida, senti-me verdadeiramente bem. Pelo menos, em sensação e prazer pela arte, foi. Lembro-me das palavras do Teodor Currentzis no final do concerto, que jamais esquecerei”.
Gravação de um disco a solo com Banda de Música do Pinheiro da Bemposta, que o viu crescer
No futuro, quer continuar a tocar em orquestra e, se possível, “tocar a solo de vez em quando”, como tem acontecido e lhe tem dado muito prazer. E o seu quinteto de metais “100 Caminhos”.
Neste momento, está a trabalhar em dois projetos, mas um ainda está guardado no segredo dos deuses: “Estou a dedicar muito tempo ao mesmo, espero que tenha o sucesso que pretendo”.
O outro pode já revelar e trata-se da gravação de um disco a solo com a banda filarmónica que o viu crescer - Banda de Música do Pinheiro da Bemposta: “Foi uma banda que apostou em mim, quando ninguém me conhecia e esses gestos nunca se esquecem”. Para este disco fará duas estreias: “uma obra para trompete e banda – “Ecos do Passado” – que encomendei à Anne Victorino d’Almeida e outra obra que encomendei ao meu colega de orquestra e amigo Sérgio Charrinho – “Fábio” – em memória a um grande amigo que faleceu muito novo, que também foi músico dessa banda”.
Confessa que irá comprar um trompete barroco em breve: “adoro tocar o instrumento”. E que tem mais algumas ideias para gravar outros discos: “Espero que cheguem a bom porto”.